100nada

Era mais giro?

Não sei. Não sei se era mais giro quando um gajo chegava aqui armado com caneta de aparo, papel de arroz e uma lamparina um pouco trémula e gaga, mais uma dose de estados de alma um pouco trémulos e de mão estendida; e escrevia como se o dia fosse um suspiro que acabava ali, coisas cheias de palavras pesadas grama a grama. Era e não era, era assim, agora não é, se era mais giro era por ser como era, agora é mais giro por ser como é. Sou mais gente: menos cozinhada em vapor, mais grelhada com batatas fritas.

Deu-me cá uma fome agora!



Como ler este tasco

(aproveitem que não é todos os dias que eu explico coisas assim)

O post abaixo pode realmente ser sobre mim. E também pode não ser. Pode ser sobre a falta de humor. Pode ser sobre as considerações que se tecem sobre algumas leituras quando se sofre de falta de humor. Pode ser uma data de coisas sobre outras pessoas. Pode ser uma coisa vaga sobre algumas pessoas. Pode ser o que me apetecer. E pode ser o que se entender.


Afinal parece-me que é de mim

Depois de ler várias coisas supostamente engraçadas e continuar de cara de pau, trombas número sete, sem esboçar um sorriso que seja, percebo que hoje não estou com sentido de humor.

(mas até me cair esta moedinha pensei muitas vezes, que tipo tão parvo, que gaja tão estúpida, que piada tão cretina, que faltinha de graça, olha-me este armado em irónico, coitadito tomara ele, olha-me esta pensa que faz rir alguém, pobre de espírito…)





O sentido da vida: um momento de rara beleza

Uma pessoa escreve um post sobre a relatividade dos problemas das baratas ou a importância na barata na infinitude do universo e, entretanto, encontra a resposta. Dentro de um balde de limpa-tudo multiusos marca Carrefour, mais precisamente.

Começando do princípio: estou eu a pendurar roupa e no ouvido um auricular agarrado a um telemóvel precariamente poisado num sítio ao lado, já que é verão e não tenho muitos bolsos. Do lado de lá da linha, alguém muito pacientemente vai ouvindo o meu rol de desgraças sobre a roupa que não acaba, os fins de semana a laurear a pevide em vez de dar o corpo ao manifesto no papel de Etelvina e mais a porra do chão da cozinha que está tão sujo que já se cola aos pés. A conversa dura a roupa toda e mais o tempo de ir buscar esfregona, líquido multiusos acima indicado e balde. E toca de eu-vou-mas-é-limpar-esta-merda-toda-e-é-já-que-não-aguento-nem-mais-um-segundo-é-quase-meia-noite-mas-que-se-lixe e ataco o chão da cozinha com a fúria que até aí destinei a maldizer a vida das donas de casa a desoras.
É então aí que se dá a epifania sobre o sentido da vida.
Quando a cozinha já vai a meio e o rol das desgraças quase no fim, resolvo limpar um canto que me escapou. Estico-me mais e, de repente, agarrado ao auricular e à cabeça que acompanha o movimento do braço, voa o telemóvel de cima da banca e

claro

tinha de ser

mergulha exactamente a meio do balde. Dentro da água a ferver (que assim o chão seca mais depressa) misturada com o líquido multiusos marca Carrefour (isto é importante: quando secar se ainda funcionar, ficamos a saber que também limpa telemóveis por dentro), mesmo a meio. Notei que tinha mergulhado a direito, nada de chapões, um mergulho de cabeça, digamos. Pesquei-o com o fio do auricular (também disse – acho que muito alto – um grandessíssimo foda-se com pelo menos cinco pontos de exclamação)e depois desatei a rir. Desatei a rir e não conseguia parar. Continuei a rir enquanto ligava pelo outro a dar conta da ocorrência e da razão de ter deixado a conversa a meio tão de repente, continuei a rir enquanto me ensinavam a abri-lo para o limpar por dentro (estava já a atacar a tampa de chave de parafusos a fazer de pé de cabra) e fiquei a rir enquanto acabei de limpar a cozinha. Chorei a rir. Não há nada como realmente, como diz a minha mãe e todas as desgraças são assim, há sempre mais uma para acontecer.

E percebi (uma vez mais) que aquilo que cá estamos a fazer no universo é rir.
Rir imenso. Rir sempre. (nós e as hienas.)


Life, the Universe and Everything *

(* titulo descaradamente roubado a Douglas Adams)

“Então não servimos para nada.”

Há uns meses que estas palavras me perseguem. Foram ditas por uma criança de quatro anos, como conclusão a uma explicação da mãe sobre a vida e a morte e o facto de as pessoas morrerem e as coisas (as casas, as árvores, os objectos, tudo o que é inerte ou de vida longa) ficarem, subsistirem. Na altura expliquei-lhe que não, não poderíamos ficar a tomar conta das coisas, que não ficaríamos para tomar conta das coisas e ele, um pouco triste, respondeu exactamente assim:

– Então não servimos para nada.

E eu fiquei muda, sem resposta para dar. Na altura quis escrever tudo quanto me ocorreu naquela altura, tudo o que tenho pensado ao longo dos anos sobre isso: mas só consegui frasear que

É que, suspeito bem, o meu filho com quatro anos, descobriu aquilo que nós, adultos, tentamos passar uma vida inteira a negar.

Expliquei há uns dias, em conversa, o que é que eu penso sobre tudo isto. Tento agora em palavras escritas, com uma história (muito gosto eu da parabolazinha) para início talvez.

Era uma vez um planeta que existia há milhões de anos, onde o tempo e a erosão iam operando as suas transformações, calmamente. Muitas vezes estas transformações eram brutais e mudavam a face do planeta: mas aconteciam ao longo de muitos, muitos anos: se alguém estivesse a vê-las por dentro, nem dava conta de que estavam a acontecer.
Este planeta e os seus ecossistemas poder-se-iam traduzir em equações matemáticas e físicas e químicas, sempre dinâmicas, mas que se iam equilibrando lentamente, ao sabor dos séculos. Até ao dia em que apareceu um erro de programação. Um bug do sistema.

O bug, que na história do tempo do planeta, apareceu aí há cinco minutos, começou a corroer tudo. Uma espécie de parasita agressivo, que se ia multiplicando e entrando em todos os sistemas, não desistindo até conseguir o shut down total. O bug, o parasita, tinha uma única finalidade: subsistir, sobreviver, manter-se vivo às custas do que fosse preciso, do próprio habitat mesmo que isso significasse o fim de tudo, incluindo dele mesmo.

Ora uma pessoa via um parasita desses e a pergunta imediata seria:
– e não se pode exterminá-lo?

Tudo isto, conversa fiada que se lê em todo o lado, serve para ilustrar, de forma algo infantil, aquilo que eu penso sobre a vida, o mundo e as coisas em geral. Nós não servimos para nada. A vida humana, esse erro de programação, o vírus parasita, tem uma inutilidade relativa que é, nesses termos de relatividade, total e absoluta. A humanidade não serve rigorosamente para nada, senão para se multiplicar e invadir um sistema que, até aí, estava equilibrado. A barata humana não dá nada, só retira e destrói numa relação de parasitismo com o mundo que a rodeia, incluindo outros ninhos de baratas.

Sim, podemos falar da vida e da alma, dos sentimentos, dessa coisada toda, claro. Creio que a barata humana, como é dotada de inteligência, precisa de justificações para tudo aquilo que faz, justificações que colham, sejam elas lógicas ou dogmáticas para explicar o que é ilógico. Na verdade tudo isso não é mais do que o passo necessário para a manutenção daquilo que lhe é mais caro: a vida, a sua própria sobrevivência. Se a barata tomasse consciência de que não servia para nada, deixava-se ir, desistia de viver, não valeria a pena; é preciso que existam razões para a manutenção da vida, que é a única finalidade, a primordial: e essas serão todas as que se inventem, que se imaginem que existem, que se acredite que existam. Mas, na relatividade do tempo medido em milhões de anos, não é que a barata não conte: é um vírus, vai acabar por estoirar tudo, mas não interessa nada que tenha esta ou aquela razão para existir.

– Se pensasses assim, davas um tiro na cabeça.
– Pois dava. Mas eu também tenho em mim o instinto de sobrevivência que me faz continuar furiosamente a respirar, mesmo que saiba que não passo de um erro de programação numa equação.