100nada

Back to the flying elephants

O aviador sobrevoou a ilha.

Era o último de vários voos extraordinários. Já se tinha habituado ao estranho local que era aquele mar, depois de quase ter chocado com uma manada de elefantes voadores de enormes orelhas e lágrimas redondas que pingavam sobre a água, facto que lhe tinha causado um imenso esfregar de olhos e a séria suspeita sobre a quantidade de álcool que caberia nas garrafas de água que levava a um canto do hidroavião. Mas após ter avistado uma jangada coberta de ratos que, iria jurar, estavam ao estalo uns aos outros, já começava a acreditar em tudo.

A ilha era pequena e apenas se via uma luz. Pequena, quase insignificante à luz do dia. De noite, pensou ele, deve ser um farol potente dirigido a parte nenhuma, com tantas milhas de água entre esta ilha e a terra firme seguinte. Se há luz, estará lá alguém? e foi nessa altura que viu o elefante na praia. Um elefante numa minúscula praia, imóvel e de orelhas levantadas para o céu, viradas a poente, as duas, como antenas dirigidas a algum sinal desconhecido. Passou por cima, a rasar, mas o elefante imóvel não virou sequer um músculo; como se não visse aquele avião ali, como se não ouvisse os motores, como se nada importasse no universo senão aquilo em que se estava a focar.

E o aviador, curioso, amarou. Alguma explicação teria que haver e estaria na ilha, no elefante, na luz acesa durante o dia.

O elefante virou os olhos quando o viu subir pela praia. Fitou-o seriamente e continuou imóvel. O aviador perguntou sem medo (mais tarde questionar-se-ia sobre a ausência de medo mas na altura achou normal) qualquer coisa como WTF se passa aqui e o elefante respondeu: xiiuuu que ainda estou a ouvir. A ouvir o quê, pensou o aviador, mas sentou-se calado e o dia foi correndo em silêncio, um silêncio de mar e ondas e elefantes quietos a respirar.

Depois caiu a noite, o elefante baixou as orelhas e começou a falar. Contou-lhe a história toda dos elefantes da 2ª circular. A razão de ter ficado para trás. O desespero de ter ficado sozinho, os dias a passarem, as histórias que tinha começado a escrever na areia, a matemática que tinha aprendido nas estrelas e os cálculos de pesos dos grãos de areia. Já tinha calculado mais de metade da ilha e todos os dias enviava os dados; durante o dia, ouvia as baleias discutirem se as contas estariam correctas, elas que toda a gente sabe, conversam sobre dinâmicas aplicadas a areias, águas e marés e se riem dos marinheiros que não acertam. Tinha acabado por se habituar à solidão. E havia sempre alguma coisa de novo. Ao princípio tinha escrito romances na areia molhada e os capítulos prosseguiam, todos os dias um novo, o anterior engolido pela água, o que lhe parecera completamente lógico: só a escrita na areia é verdadeiramente pura, só essa detém a eternidade de um momento perfeito. Como um grão de areia. E por fim tinha entendido que cada grão tem histórias dentro, cada um escrito e reescrito até ao infinito. Deixara de escrever e passara a pesar cada grão até lhe adivinhar o interior. Os dados que enviava às baleias, em código avançado, eram essas histórias. Elas, que conheciam todas as histórias do universo, discutiam depois esses novos dados da equação total, já que nunca tinham tido essa perspectiva de elefante. Alguns descartavam, outros eram incluídos e aquela história era alterada. Apenas o peso de um grão, mas era alterada, mesmo assim e esse peso podia mudar o rumo de todo o resto. Era uma tarefa importante.

O aviador ouviu tudo. E depois, sem mais nem quê, porque a história já ia longa e tinha sono e a autora também, assim à bruta, perguntou ao elefante,
– Mas estás feliz? É isto que queres? Tenho ali um hidroavião. Queres sair da tua ilha?
e o elefante olhou para o aviador com uns olhos enormes e respondeu:
– Ainda não percebeste, pois não? Olha para as minhas patas.

E o aviador olhou o elefante de alto a baixo. Viu um elefante com umas grandes orelhas. Viu a pele do elefante. Viu o sorriso do elefante, um sorriso que precede a entrega de conhecimento. Desceu até às patas do elefante.

As patas do elefante eram de areia.
E o aviador percebeu, finalmente, que também aquele elefante se tinha transformado numa história.

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