Conto de Natal (6)
Genoveva grita. Ainda sem acordar, grita. Há mais de trinta anos que as criadas avisam as novas, não te assustes, a senhora grita sempre de manhã. Depois pára. Há trinta anos não parara. Gritara sempre, durante dias e dias, durante o enterro do Conde, durante as rápidas manobras políticas da nora para se tornar Condessa, durante o tempo em que os filhos do Conde tinham decidido que o que ela queria, sempre tinha querido, era dinheiro, muito dinheiro, e tê-lo-ia, se abdicasse do título. Genoveva gritava. Nunca ninguém soubera o que tinha acontecido quando ela finalmente resolvera acordar o Conde, na manhã em que ficara viúva. Apenas os gritos e os olhos fixos num não-se-sabe-onde, enquanto os desmaios iam acontecendo à sua volta. Talvez se tivesse desmaiado, talvez se tivesse chorado, tivesse direito à compaixão de alguém. Mas gritos são uma coisa desagradável e demente.
Também não se sabe o que a Madre Superiora do Convento das Irmãs de Santa Cunegundes lhe disse depois. Mas resultou, e isso é que interessa. Genoveva calou-se finalmente e os gritos passaram apenas a uma rotina matinal. Durante meses foram os únicos sons que produziu, fechada no seu quarto de solteira. Todos os dias o Convento era acordado pelos seus gritos, e as irmãs rezavam pela sua alma, mas as pessoas habituam-se a tudo. Aos poucos chegou a Primavera e Genoveva transformou-se numa figura silenciosa, que passava os dias nos jardins.
Quando se conhece bem o jardim onde se passeia todos os dias, quando todos os caminhos são familiares, quando, de manhã, os pés descalços reconhecem a relva fria e molhada, quando não se é capaz de ver as folhas das arvores a crescerem na Primavera, porque todos os dias está sempre igual, quando tudo isto desaparece e no mesmo lugar surge de repente uma floresta virgem com monstros escondidos, é preciso aprender tudo outra vez. É preciso calcorrear todos os caminhos, espreitar debaixo de todas as pedras, é preciso que as pontas dos dedos sangrem a cavar o chão, para que nada fique por descobrir, para que tudo se torne familiar outra vez, mesmo que seja tudo diferente.
Quando as macieiras deram flor, Genoveva nasceu outra vez e as cicatrizes ficaram presas aos sonhos das suas madrugadas.
(à suivre)
- Conto de Natal (5)
- O romantismo causa gripes
MANIFESTO CONTRA O ASSASSÍNIO DA MEMÓRIA.
Quero aqui lavrar o meu mais veemente protesto e repudia, contra a estação de televisão SIC, em particular aos seus canais SICGold e SICRadical.
Desde o primeiro dia de emissão destes canais, em especial do SICGold, que eu me sinto lesado pela forma impiedosa e cruel, com que este canal destruiu, sem misericórdia, parte da minha memória televisiva, enquanto adolescente.
Por essa razão, resolvi escrever este manifesto, o qual irei entregar posteriormente às autoridades competentes.
É triste, demasiado triste para mim, ver ceifadas assim, as minhas memórias.
Foi um soco difícil de encaixar, constatar por exemplo, que as peripécias passadas a bordo do .Barco do amor. , não são afinal, passadas a bordo de nada. Pior, foi finalmente descobrir que no .Caminho das estrelas., tudo é falso: as portas que se abrem sozinhas, as armas futuristas, os intercomunicadores, a nave, as orelhas do Spock… falso, tudo falso!
O golpe matreiro e certeiro que me deixou sem reacção, foi dado no dia em que dei conta que o magnifico rancho de .Dallas. , é afinal um mísero estúdio mal iluminado.
Com tudo isto, pretendo e exijo mesmo, o encerramento célere destes malévolos canais, que brincam de forma suja com as memórias das pessoas.
Faço um último apelo, a quem tem poder para tal, caros senhores, usem o bom senso e deixem as memórias repousar pacificamente, no único local certo para elas: dentro das nossas cabeças.
“Cromos” are back again…
Mas o que eu queria dizer mesmo era (depois de um dia off dos blogs):
“Tchi! Tenho aqui leitura para umas horas…”. Acho que vai ter de ficar para depois do jantar…
Uma folha de Outono dos rádio-macau acabou de cair de uma árvore-poema no blogue da Catarina:
Acendo mais um cigarro
Invento mil ideais
Porque amanhã sei-o bem
é sempre longe demais.