Conto de Natal (5)
Deixemos Genoveva de manhã, a saltar da cama e a esfregar os olhos, perdida de sono e de contentamento, ela não sabe ainda que o Conde não costuma dormir até esta hora tardia, temos tempo depois para os gritos e os desmaios…o que é urgente agora é regressar para junto daquela figura imóvel há vários capítulos (aí uns dois, não?), de nariz colado a uma montra poeirenta…é que está muito frio e os pés do menino pobrezinho estão a ficar cada vez mais roxos. O que pensa esta criança, em vésperas de Natal, continua a querer a caixa de chocolates? Claro que sim, poderia ter ali ficado para sempre, uma estátua parada entre o desejo e o desalento. Ele sabe que nunca a terá, mas isso só o faz querer ainda mais, porque é dele e de mais ninguém.
Mas Anunciado de Jesus acabou de aviar a última cliente, três quilos de farinha, meio metro de fio, um litro de azeite e ela exigiu as compras embrulhadas. Anunciado não gosta de dar papel, ele vende papel. E cada vez que olha para a montra vê um nariz esborrachado e decide que assim não pode ser. Não mandou vir a caixa de chocolates para agora estar aquele palerma ali colado à sua montra, assim ninguém mais a vê. Tem esperança de vender algumas, mas é preciso que se saiba que aquele artigo está também disponível. E avança para o menino pobrezinho, voz grossa, olha lá, não tens mais que fazer? Havia eu de ser teu pai, mas com um pai como o teu, ninguém se admira que o filho seja um inútil…
…e o menino pobrezinho acorda de repente do seu sonho encantado e finalmente sente o frio. Abre a boca para responder, sem pensar, com a raiva de quem acaba de ser insultado mortalmente (quem quer insultar um adulto insulta a mãe, mas para um rapaz pequeno o insulto grave é ao pai) e grita, Vá para o diabo que o carregue! E depois fica em silêncio, como se as palavras ainda não tivessem sido ouvidas, só ditas. E Anunciado de Jesus ainda não as ouviu, na verdade. Entraram pelos ouvidos mas ainda estão às voltas na secção de incredulidade. Depois passam pela secção do medo (Anunciado é um homem de fé, mas por vezes, quando engana as clientes no troco, sente um frio a soprar-lhe as orelhas e benze-se sempre). Quando finalmente atingem a secção do entendimento, a resposta é automática. O menino pobrezinho aterra na lama (não que lhe faça muita diferença, mas a que tinha agarrada ao corpo entretanto tinha secado) agarrado à cara e não fora Lurdes aparecer nessa altura, teria talvez mais algumas nódoas negras para tratar nessa noite.
Lurdes é mãe. As mães disparam primeiro e perguntam depois. Ela não é diferente. Atira-se a Anunciado de Jesus e agarra-o com força (finalmente Anunciado recebe o abraço que esperava há mais de quinze anos) e depois empurra-o, gritando sempre, o meu filho, seu bruto! Ai, meu filho! Que é que te fizeram? enquanto limpa (sem grande sucesso) a lama e o sangue que escorrem do nariz, agora sim verdadeiramente esborrachado, do menino pobrezinho.
(à suivre)
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