100nada

Faz-se de conta

– Faz-se de conta que está aqui um texto lindo sobre o Natal, o amor, as crianças, a família, os amigos e mais luzes assim;

– Faz-se de conta que respondi a todos os telefonemas, cartões enviados pelo correio, sms’s, emails, comentários no blog e outras formas de recebimento de votos de quadra feliz em vez de ser a ursa que nem manda nem responde;

– Faz-se de conta que tenho presentes para todas as pessoas a quem quero dar, incluindo as minhas irmãs

– Faz-se de conta que as malas estão aviadas e o cesto da roupa suja não está cheio até acima;

– Faz-se de conta que já tratei de tudo o que tinha para tratar;

– Faz-se de conta que tenho ainda imenso tempo para o que falta;

– Faz-se de conta que consegui estar com toda a gente a quem me apetecia dar um grande abraço;

MAS!
Não se faz de conta que fui ao cabeleireiro! Olé!
(as prioridades são as prioridades e mai nada!)

Feliz Natal para todos, meus queridos amigos. E muito obrigada pelo ano bom que me proporcionaram.

– Adenda, ó apardalada? E os votos para o ano que vem?
– ah! Pois é! Feliz Ano Novo!





Um conto de Natal

A miúda tem onze ou doze anos. É alta para a idade, muito magrinha, braços fininhos enfiados numa camisola grossa. Está muito frio nessa manhã de 25 de Dezembro de 1976. A miúda passa pela manhã de presentes e de abraços mas antes do almoço vai-se embora – vou dar uma volta. Pega na bicicleta, uma antiga de selim de cabedal, alta demais para ela, não chega com os pés ao chão, mas é de senhora, basta dar um salto para parar e sem quadro é mais fácil. Já está habituada.

Não leva casaco apesar da temperatura ser muito baixa. O dia é de sol, um dia de inverno em que o céu é muito azul e, àquela hora, quase não há sombras. Agarra na bicicleta e vai-se embora.
Pelo caminho de poucas ruas e alguma estrada até chegar aos caminhos de terra, seca agora depois de uns dias bons, embora os buracos de mau tempo se mantenham, o Natal e a vida vão passando como os postes de electricidade. Presentes pelo canto do olho, olhados com olhos que marcam mas não registam. Na idade das emoções, num dia de sentimentos mais complicados, tudo fica gravado mas não há lógica, apenas velocidade nas descidas e o frio a cortar a cara e as orelhas e os nós dos dedos. Creio que é disso que ela se lembra melhor: das mãos a apertarem com muita força o guiador e dos dedos gelados. Se olhar para baixo ainda consegue ver essas mãos, o guiador, a roda da frente e o chão a rolar muito depressa. Não há árvores nem vinhas nem couvais, só estrada e roda e movimento. E frio, esse frio que entrou sem se notar pela vida dentro mas deixou de passar.

Aos onze, doze anos, sabe-se bem que se viveu uma revolução há algum (muito) tempo. Sabe-se e sente-se que essa revolução que trouxe uma data de coisas boas que dizem que sim, a ela lhe tirou quase tudo: a vida, o sol tropical, a casa, os brinquedos e os livros (esses acabam todos por chegar, pode-se deixar tudo mas os livros das miúdas não, esses vão, e foram e chegaram e ainda existem), as amigas e a escola, a praia, o mar quente. E a família, que se consubstancia toda ela numa só pessoa, esquecidos avôs e tios e primos, porque o pai não veio. O pai ficou no meio da guerra que se adivinha muito bem, porque a miúda não é desconhecedora da guerra, do som dos tiros e dos morteiros, do racionamento e do recolher obrigatório, das barricadas nas ruas, de algum medo e muita euforia, do arrancar da cama a meio da noite e idas para a cave, dos aviões cheios e do ‘entregue à hospedeira’. O pai ficou lá e manda cartas e fala com a mãe muito pouco, três minutos, e manda beijinhos, gosta muito das filhas e tem muitas saudades.

Ela, a miúda, conhece também o sabor da liberdade. Depois das aulas, todos os dias, fecha-se numa divisão ainda mais gelada da casa gelada, olha para as estantes de todas as paredes e escolhe, hoje vou ler este. Ninguém a impede, já tem idade para ler tudo e lê tudo. Isso é uma coisa boa, o isolamento e as folhas. Arrisca-se e escreve algumas também e depois rasga. Mas pode fazer isso tudo, ninguém não a deixa fazer. Pensa: é o que tem. Nem tudo é mau.

Mas nessa manhã de Natal, nada disso conta. Só há uma coisa no mundo que é a estrada debaixo das rodas e as mãos geladas e a velocidade. Porque assim o que possa eventualmente saltar dos olhos (que negaria a toda a gente, principalmente a si mesma) nem se nota, voa para os lados e não rola: não existe. E do que se lembra, nas mãos já brancas de força e frio, é a fúria de uma alegria que a há-de aguentar toda a vida, essa fúria de felicidade feroz, em momentos parecidos: o pai chegou para o Natal.


O meu Natal

Não sou capaz de não gostar do Natal e de todas as suas periferias. Lamento imenso, mas é mesmo assim. Sei que está na moda (há muitos anos) um certo espírito blasé de que seca não se aguentam as filas nas lojas ou o politicamente correcto na perspectiva marxista se há quem não tenha natal também não deveríamos ter (que é só uma desculpa mais arranjadinha para o que seca não se aguentam as filas nas lojas). Mas eu gosto, gosto muito, adoro e deliro com a coisa toda. Não é a parte consumista, embora essa me aguente de enorme sorriso nas filas das lojas, porque me diverte e distrái ir olhando para o lado e imaginando que aquela boneca vai fazer feliz uma menina ou aquelas peúgas vão aquecer uns pés ou aquele livro há-de ser folheado por uma pessoa que não sei quem é; e todas essas pessoas vão receber essas coisas das mãos de alguém que gosta delas; ou se calhar nem gosta mas faz o esforço. E se não faz deveria fazer porque o Natal é paz e amor e essa é a mensagem principal da criança que faz anos no dia 25: amai-vos uns aos outros e perdoai as nossas ofensas e o pão nosso. E quem diz pão, diz o bacalhau cozido com azeite a ferver por cima e uns alhos já agora, e as rabanadas e o peru (que até dispenso) e os belhoses e as broinhas e o bolo-rei (para mim rainha se faz favor) e os presentes que não precisam de ser caros mas que (os meus) são embrulhados em casa, por mim, com laços manhosos que continuo a não dominar essa arte e umas etiquetas minúsculas onde consigo sempre escrever mais do que o para e o de.

O Natal é música na rua e nas lojas, essa que já ninguém atura mas que a mim me enche a alma de jingobéls e para todos um bom natal e a sonhar com um natal branco. São as iluminações de rua, as que acho mais bonitas sendo para as crianças as mais feias, porque os meninos gostam de cores e bolas e brilhos e não de coisas de extremo bom gosto, elegância e sobriedade, que nós achamos tão bem mas que para eles não são: os papéis têm de ter pais natais e estrelas douradas e muito vermelho e verde e o azevinho e as flores de natal devem ser exactamente assim e não azuis e prateados, embora se possa ainda assim aceitar essas, já que o Menino nasceu de noite e gostariamos de pensar que as estrelas estavam lá todas a assistir.

O Natal é ficar na fila dos carros para ir ver as luzes ao domingo à noite, é ir ouvir cantar carrols no metropolitano; que saudades de começar a ouvir ao longe um coro que, por vezes nem era assim tão afinado, mas normalmente era bastante bom, a ecoar nos corredores e nas escadas rolantes do London Underground e ir cantando, em surdina, aquelas coisas que toda a gente conhece. Ou em glória, aos berros no Royal Albert Hall, em Carrols for Choir and Audience, com as letras distribuídas à entrada e milhares de pessoas a cantarem

O come, all ye faithful, joyful and triumphant
O come ye, O come ye to Bethlehem

(só de escrever me arrepio)

e já a descer as ruas e a olhar para as montras do Hamley’s. O meu Natal é tão londrino, como é que isto aconteceu? Talvez porque lá não exista esta nossa provinciana vergonha de cantar nas ruas, envergar barretes vermelhos de tira e pompom branco e debitar sorrisos a quem passa só porque sim, porque é Natal.

O Natal são os sapatos deixados na noite anterior nos lugares já marcados há anos que este sofá é meu e aquela cadeira é tua e já nem é preciso saber qual é a da avó porque está sempre ali nem precisa de sapato, é a porta fechada e os miúdos todos ansiosos, é a alegria dos embrulhos, é o som do papel a rasgar, é abrir os presentes aos poucos, primeiro os mais novos e ir tentando por ordem na sala a fazer bolas dos papéis gastos e atirá-los todos para um canto, é depois são vocês agora e (entretanto a avó já está farta de esperar e já abriu as coisas todas), são as fotografias que notamos serem todas péssimas depois, porque estamos despenteadíssimos e de roupão e ainda com as lentes de contacto por colocar, óculos colados com fita cola, ai filha ficaste tão mal nesta e os miúdos escondidos por detrás de caixas enormes, que não são nada ecológicas mas faz sentido por serem crianças e gostarem de pacotes grandes mesmo que lá dentro esteja uma coisa pequena e depois de tudo aberto a parte de olha aqui as minhas e muito obrigada era mesmo isto que eu queria, como é que adivinhaste? Bem tinhas-me dito! Ah pois foi mas olha que é muito mais giro do que eu pensava e depois abraços e beijos e algumas lágrimas ao canto do olho porque afinal é apenas de amor e estima que se trata e de tentar fazer os outros felizes.


Há coisas que um gajo nunca mais se esquece. E se escrevo gajo desta vez não é só por ser costume aqui do meu tasco. Desta vez escrevo gajo, porque um gajo (não é que uma senhora não seja também mas neste caso é isto e isto é mesmo assim) é amigo do seu amigo, sendo que esse amigo é amigo deste gajo. Isto está confuso mas tu percebes.
Há coisa que um gajo nunca mais se esquece. A amizade não se agradece, mas toma lá uma palmada nas costas. Coisa assim de gajos como creio que seja: sem grandes palavras ou grandes gestos, mas com algumas certezas absolutas: principalmente nos dias maus. Que um gajo como eu tem uma sorte do caraças em ter um amigo como tu.
Muitos parabéns, OldMan.


O 'nosso' urso de relva

“O enorme urso gigante, em relva, que era a imagem de referência do Parque Verde do Mondego, em Coimbra, ardeu num incêndio ocorrido durante a última madrugada. Uma situação que, por se tratar de fogo posto, já está a ser investigada pela Directoria de Coimbra da Polícia Judiciária.”

O nosso urso de relva era este.

Há mais de um ano, à sombra deste urso, juntaram-se algumas raparigas que se conheciam virtualmente: elas e os seus filhos, numa tarde de calor e brincadeira. Foi um dia que fica marcado nas nossas vidas (creio poder falar por todas): em que não nasceu, porque já tinha nascido, uma grande amizade e estima entre nós, antes se cristalizou essa estima, respeito, carinho, o que se quiser chamar. Uma delas acaba de me avisar que queimaram o nosso urso…fico tão triste, tão triste. Mas o outro urso, o que não se vê, esse ficará sempre. Acho que é isso que interessa.
Um beijo para essas minhas amigas.