100nada

Um conto de Natal

A miúda tem onze ou doze anos. É alta para a idade, muito magrinha, braços fininhos enfiados numa camisola grossa. Está muito frio nessa manhã de 25 de Dezembro de 1976. A miúda passa pela manhã de presentes e de abraços mas antes do almoço vai-se embora – vou dar uma volta. Pega na bicicleta, uma antiga de selim de cabedal, alta demais para ela, não chega com os pés ao chão, mas é de senhora, basta dar um salto para parar e sem quadro é mais fácil. Já está habituada.

Não leva casaco apesar da temperatura ser muito baixa. O dia é de sol, um dia de inverno em que o céu é muito azul e, àquela hora, quase não há sombras. Agarra na bicicleta e vai-se embora.
Pelo caminho de poucas ruas e alguma estrada até chegar aos caminhos de terra, seca agora depois de uns dias bons, embora os buracos de mau tempo se mantenham, o Natal e a vida vão passando como os postes de electricidade. Presentes pelo canto do olho, olhados com olhos que marcam mas não registam. Na idade das emoções, num dia de sentimentos mais complicados, tudo fica gravado mas não há lógica, apenas velocidade nas descidas e o frio a cortar a cara e as orelhas e os nós dos dedos. Creio que é disso que ela se lembra melhor: das mãos a apertarem com muita força o guiador e dos dedos gelados. Se olhar para baixo ainda consegue ver essas mãos, o guiador, a roda da frente e o chão a rolar muito depressa. Não há árvores nem vinhas nem couvais, só estrada e roda e movimento. E frio, esse frio que entrou sem se notar pela vida dentro mas deixou de passar.

Aos onze, doze anos, sabe-se bem que se viveu uma revolução há algum (muito) tempo. Sabe-se e sente-se que essa revolução que trouxe uma data de coisas boas que dizem que sim, a ela lhe tirou quase tudo: a vida, o sol tropical, a casa, os brinquedos e os livros (esses acabam todos por chegar, pode-se deixar tudo mas os livros das miúdas não, esses vão, e foram e chegaram e ainda existem), as amigas e a escola, a praia, o mar quente. E a família, que se consubstancia toda ela numa só pessoa, esquecidos avôs e tios e primos, porque o pai não veio. O pai ficou no meio da guerra que se adivinha muito bem, porque a miúda não é desconhecedora da guerra, do som dos tiros e dos morteiros, do racionamento e do recolher obrigatório, das barricadas nas ruas, de algum medo e muita euforia, do arrancar da cama a meio da noite e idas para a cave, dos aviões cheios e do ‘entregue à hospedeira’. O pai ficou lá e manda cartas e fala com a mãe muito pouco, três minutos, e manda beijinhos, gosta muito das filhas e tem muitas saudades.

Ela, a miúda, conhece também o sabor da liberdade. Depois das aulas, todos os dias, fecha-se numa divisão ainda mais gelada da casa gelada, olha para as estantes de todas as paredes e escolhe, hoje vou ler este. Ninguém a impede, já tem idade para ler tudo e lê tudo. Isso é uma coisa boa, o isolamento e as folhas. Arrisca-se e escreve algumas também e depois rasga. Mas pode fazer isso tudo, ninguém não a deixa fazer. Pensa: é o que tem. Nem tudo é mau.

Mas nessa manhã de Natal, nada disso conta. Só há uma coisa no mundo que é a estrada debaixo das rodas e as mãos geladas e a velocidade. Porque assim o que possa eventualmente saltar dos olhos (que negaria a toda a gente, principalmente a si mesma) nem se nota, voa para os lados e não rola: não existe. E do que se lembra, nas mãos já brancas de força e frio, é a fúria de uma alegria que a há-de aguentar toda a vida, essa fúria de felicidade feroz, em momentos parecidos: o pai chegou para o Natal.

0 thoughts on “Um conto de Natal

  1. catarina

    Vanus, acho que sim, sempre.

    Mana, xaláisso, pensa antes em sacos de cinco quilos de sugus, lembras-te? :)
    (e quando estiveste doente, a ‘camarada’ dos telefones de lá a ligar ao pai a perguntar: a sua menina está melhor??? É que estava ocupada com outra coisa e não consegui ouvir a conversa de hoje com a sua mulher)

  2. Joana

    Eu estou aqui ocupada a esconder as lágrimas nos olhos, agora não posso comentar. Mas se pudesse, diria que escreves tão bem que até eu senti aqui o vento e o frio nas mãos.
    Um beijinho!

  3. Eufigénio

    Um lindíssimo ‘conto’ Catarina. Hei-de trazer os meus filhos a lê-lo. Dir-lhes-ei que é uma prenda de quem sabe escrever assim tão bem o Natal que verdadeiramente importa, o que está para além dos bolos e das prendas.
    Um beijo

  4. mana

    vinha aqui dizer: pois e os sugus e tal, tens razão, e corroborar que o texto é lindo.
    mas pronto, já tou a chorar outra vez. se calhar é por não ter podido chorar na altura.

  5. Professora de Português

    ai a pontuaçao minha menina
    de resto, podia estar mais desenvolvido
    da tua prof. de portugues

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