100nada

Trovoadas

Não sei porque é que gosto tanto mas lembro-me dos primeiros quandos.
Nós tínhamos uma casa na ilha. Era nossa, de todos, quando somos pequenos as nossas casas são nossas mesmo e
(não vou escrever sobre a casa agora, mas hei-de, porque era uma casa e uma rotunda e areia ali mesmo e mesas dentro de água e a baía, quase na ponta da ilha e é uma memória – nossa – importante)
é nesse quando e nesse onde que me lembro das (primeiras?) trovoadas, as mais bonitas da minha vida, no meio de um calor tremendo, da humidade que escorria por nós (não me lembro de me incomodar com isso, não devia ter idade para esses detalhes interferirem com o meu mundo), as trovoadas sobre a baía. Tudo coberto de relâmpagos, uma visão brutal e uma sensação incrível de – na altura eu não sabia o que era – natureza cruamente pura. Passavam muito depressa, depressa demais, mas se calhar (penso eu agora) é assim que deve ser uma trovoada perfeita, uma explosão de raios, trovões que se ouvem até aos ossos e depois passar de repente e deixar-nos exaustos, ainda com tudo a rodar na memória imediata.
Uma trovoada perfeita é essa: a que continua dentro. Às vezes o resto da vida, como as minhas.


Verão full loaded, press continue

Já é verão oficial, de data marcada no dia mais comprido do ano e que me passa ao lado. Ou talvez não, o verão também é de dias de nadas em roupão, gelados, cafés e preguiça pura, em estágio (usando a nomenclatura da actualidade) de início de época.
Lembro-me de um dia de verão há muito tempo em que ouvi, logo ali no fim de Junho, “está quase a acabar o verão”. Aquela frase bateu-me, o copo meio vazio, é assim que uma pessoa se define em meia dúzia de palavras e eu, ainda miúda, a dar troco, claro que não estava nada a acabar, faltava tanto tempo, sem perceber que há pessoas que lamentam o fim das coisas boas quando elas começam, as que acordam ao domingo a pensar que no dia seguinte é segunda-feira, as que nem tentam porque vai dar merda, as que não arriscam porque já perderam. E realmente perdem, sentadas em cima da vida para que não mexa muito, não faça ondas, se mantenha ali, entre o dia em que começa o verão e o dia seguinte em que está quase a acabar, numa sucessão de domingos de neura em eterna antecipação de segundas feiras de merda.
Isto tudo para chegar ao fim do primeiro dia de verão, o meu primeiro dia de verão oficial e saber que isto dos dias fixos no calendário é só mesmo isso, uma data convencionada e o meu verão começa
(quando passo a usar sandálias)
(ou a beber gin tónico)
(ou a dormir só de lençol)
(ou a ver uma lua enorme amarela ao fim da tarde)
quando eu quero.


Debaixo de água

Há frases que passam no meio de outras, assim meio distraidamente, absolutamente normais no contexto, nada que seja dito com grande ênfase

“Há palavras que nos beijam” é a frase que abre um poema de Alexandre O’Neill, o meu favorito deste meu favorito poeta. Foi a frase que definiu este blog durante um tempo (anos?) e até a escrevia em mim, com tinta permanente, se acaso alguma vez estivesse para aí virada

e é isso, “há palavras que nos beijam” e também há frases que surgem tão naturalmente, tão inseridas no resto que

(não são um chapadão que nos atira contra uma parede, não são dessas, são das outras, das que nos arrancam o ar todo com uma almofada de penas)

e nos deixam com um sorriso imenso por dentro.


agora fica assim

A olhar para uma árvore, literalmente (de todas as árvores do mundo que gosto, esta é a única que quero ferozmente ver morta e de todas as doenças e bicharocos nojentos que levam pinheiros e palmeiras, não há um que sirva nesta, mas isso é outro tema que me deixa logo irritada e não era nada disso)

(não era mesmo nada disto)

(lá está, os posts têm vida própria e desandam por outro lado qualquer e depois anda uma pessoa a tentar agarrá-los, mas quando escreve sobre bicharocos nojentos percebe que este perdeu qualquer que fosse o rumo)

(depois desato a rir a pensar em bicharocos nojentos mortos com almofadas e ninguém mais se lembra de não as usar)

(não, não era nada disto, mas é uma página com uma dobra no canto à mesma)


E depois há também o livre arbítrio

Há qualquer coisa de terrivelmente atractivo no nevoeiro. É por ser inquietante, talvez. Temos a mania que só a clareza e a transparência são “boas”, que o branco e a luz é que são “certos”, e provavelmente até serão, mas o lado escuro, obscuro, perdido em nevoeiros, também tem uma certa graça. Muita até.
Nem toda a gente concordará, é evidente, mas sei que há pessoas que me entendem.

Há um clube de pessoas de olhos de gato que conseguem ver no escuro e no nevoeiro. Uma espécie de visão raio qualquer coisa, que adivinha o que lá está dentro, que antecipa e se arma até aos dentes e que entra sem hesitar, porque é nesse lusco-fusco, nessa terra de ninguém, que se encontra aquilo que é contraluz, as sombras que fazem parte da vida dessas pessoas. Não há aqui escolha, é puro impulso, emoção crua, não há cá óculos especiais para ver essas zonas, a visão está dentro (ou não existe e permanece-se do lado de fora e não tem problema absolutamente nenhum e a vida até é mais simples a preto e branco e nada redutora, apenas diferente). Mas quem gosta (não sei sequer se se trata de gostar, é uma necessidade absoluta, não se trata aqui de likes e sim de have tos) de nevoeiros e quem já lá andou dentro entende. É a natureza dessas pessoas, nascem ou em certa altura aparece-lhes um bocado de não-tem-nome na alma e essa parte acha giro coisas que outras pessoas acham estranho. Não quer dizer que não se tema, mas isso faz parte do giro, é um desafio. E giro é também pensar, aqui e agora, que 99% acha maradice literária e menos de 1% sabe. E algumas pessoas, que nunca pensaram nisso, estão a olhar para dentro e a fazer a pergunta

E eu, também sou assim?


Considerações sobre pedras e calhaus

Há sempre merdas que nos fodem a vida. Sempre. É um facto. Podem ser uma merdas de nada, quase sempre são, podemos achar graves (mas essas não são as merdas que nos fodem a vida, essas são mesmo coisas graves e é todo um outro patamar que não é o tema aqui), podem ser nada, mas chateiam e massacram e, basicamente, lixam qualquer coisa da nossa vida, um bocado mais ou menos, consoante nós deixamos. Ou não. Grande parte dessas merdas, no fundo, não são importantes, só parecem. Podem incomodar (algumas incomodam) mas se não forem coisas graves, não passam de detalhes aborrecidos que não podem/devem condicionar tirar qualidade à vida, que já tem coisas graves e chatices obrigatórias que sobrem.
Não é fácil ignorar/atirar para o lado/passar por cima de toda essa tralha inútil que vai moendo aqui e ali, até porque quando levamos com uma em cima, ficamos tão ocupados a roer a dita que não há discernimento para perceber que é só mais uma merdicaca que se pode sacudir e fica resolvida. É um processo mental que leva tempo, aprender a distinguir o essencial do acessório, o realmente sério do incómodo momentâneo, mas depois de se perceber o que é a nossa linha de vida, o que se tem, o que se quer, o que é mesmo importante, começa a ser mais simples.
Isto é sempre um caminho. Uma pessoa fica parada ou anda para a frente, essa é a primeira parte. E o resto são calhaus. Uns, umas pedras complicadas, empurram-se, trepa-se, ultrapassa-se com esforço, são as que realmente nos impedem de prosseguir, que nos param, que nos doem, são as coisas graves. Outros, são mesmo só calhaus. Não vale a pena ficar parado a olhar para o calhau só porque ali está. É só um calhau. É o que eu digo a mim mesma, há anos a tentar que a merdicaca não me afecte a vida, é só mais uma merda que não vale o meu tempo. Talvez porque ache sempre que só temos esta vida, este tempo curto e isso, a vida, o tempo que temos, é para ser gasto? ganho? da melhor maneira possível. E, todos os dias, pensar: este valeu a pena.


27 graus já é alguma coisa

Entre a hora de perfeito silêncio e a hora que precede o sol, esse tempo vagamente azul, de sono acordado, é esse momento a que se regressa. Como se fosse uma imagem (mas não é uma polaroid) feita de pedaços de memórias que só se partilham assim, em letras invisíveis.


Sem filtros e outras merdas

Cai a noite devagar e não encontro o caminho para casa. Pode ser da neblina de verão, misturada com o pó que se levanta e fica da cor do sol de fim da tarde. Pode ser de estar de olhos fechados, a sentir o vento na cara, à procura com o nariz, como um cão. Imagino sempre que os cães vêem (com o faro) riscas às cores ou em vários tons (os cães não vêem cores, pois não?) cada risca uma coisa diferente, uma pessoa, um coelho, um osso, o vento, o medo, deve ser tão bom ver tudo em riscas (imagino que são fitas) e sem filtros, tão mais simples também. Se abrir os olhos, verei tudo em riscas? Uma fita muito a direito, onde quase se consiga ler “é por ali” mesmo que a noite caia e já não seja neblina ou pó cor do sol, apenas ramos de árvore desenhados contra o escuro, não seja capaz de ver onde tenho os pés e, mesmo assim, eu saiba.

(mas o mais provável é tropeçar e enfiar um ramo num olho)



Tangentes e riscos no céu

(este é daqueles que se escreve sozinho)
Já não me lembro se se diz tangencial, mas pouco importa, porque desde que eu saiba, tangencial fica, mas em modo com um corte profundo entre, como se cortasse uma qualquer coisa ao meio e cada bocado caísse para um lado, mais ou menos isso. Estou a escrever uma metade, a outra é igual, tanto faz, só que a outra metade é real e este pedaço é uma ideia, muito difuso, só se entende o que é porque tem um letreiro em cima “metade de uma qualquer coisa”.
Adiante.
Há um céu azul aqui que vai escurecendo e aviões quase a aterrar. Vejo do lado de dentro, sempre, como se estivesse à espera que um deles explodisse, espero também que a NSA não me venha em cima porque imagino aviões a rebentar, os gajos são tolos para isso, mas que se foda. Uma pessoa está sempre a ver o que acontece depois, nunca é o estático, é o que se mexe à volta. Ou o que voa para o lado oposto, isso sim, é o inesperado e não sei porque é que ver um avião a levantar, quando aqui só passam dali para ali e não para lá, não sei porque é que este que passou e quebrou a sequência, me deixou feliz, mas a verdade é que há quem olhe para as folhas de chá e eu olho para o céu e não vejo sinais, porque não acredito nessas porras, mas gosto de coisas que saem dos conformes.