Escrito à mão
Escrevo à mão com uma caneta preta numa folha branca. Um bloco A5 equilibrado num livro (é uma Anita) para não resvalar. Mais tarde, arrancarei as páginas. Levo-as comigo. Ficam no saco ou vão parar a um canto qualquer. Quem sabe, talvez as copie para o computador, mas é pouco provável. É uma pastilha elástica, o que eu escrevo. Não é para mastigar duas vezes, da segunda seria uma pasta branca, já dura e sem sabor.
Escrever à mão, para além de me magoar aquele bocado que assenta no papel (daqui a nada vai começar a doer-me o dedo mindinho), tem uma desvantagem adicional. Agarro o cigarro com a mão esquerda. E lembro-me que não entendo o que oiço quando tenho o telefone encostado ao ouvido esquerdo. O cigarro na mão esquerda, também não o entendo: escorrega-me dos dedos, esqueço-me de o fumar. Não sei bem o que está ali a fazer, a cinza quase a cair. Acabo por apagá-lo, um pouco frustrada. A cinza a cair em cima do teclado, enquanto os dedos vão batendo nas teclas, é mais inspirador.
O chá é cidreira. Hesitei antes de o escolher. Parecia-me mais de acordo com o papel e a caneta outro que não um que acompanhasse quase diariamente o teclado. Mas já não me é possível desligar dos meus chás nocturnos. E isso não sei se gosto. É uma intromissão, nas minhas folhas brancas cobertas da minha letra, estas que, ano após ano, vão ficando cada vez mais ligadas a esta casa, que ainda cheira a tinta (os anos das casas contam-se de outra maneira, já que as suas vidas são mais longas: esta ainda é uma casa-criança) e já está cheia de recordações.
Mas não estou imersa, não deu tempo. Mais uns dias desligava e beberia outro chá, talvez de folhas novas, flores amarelas, uma ou duas papoilas, cogumelos de humidade que rasguei da relva com um pé. Desligava com mais tempo ou talvez não: trago comigo um formigueiro, uma inquietação; não lhe chamo angústia (hoje não). Uma vontade de desescrever. Já que escrever me vou lentamente habituando à sua impossibilidade. Não é fácil. É como deitar fora o casaco mais confortável que se teve mas que deixou de servir, desfiando-se de tal maneira que só sobraram os botões. É estranho continuar a (tentar) apertar um casaco sem tecido; às vezes, ainda encontro um pedaço que poderia ser uma casa e consigo apertar um botão. E, por momentos, tenho uma ilusão feliz e até me esqueço que não tem mangas. Nem frentes. Nem costas.
A realidade, claro, sempre foi o oposto: o casaco é que era tecido de ilusões. E eu vou desescrevendo a minha (às vezes quase aliviada) mágoa de assim ser.
21.03.04, 1:30 am
- Como se nota, os comentários são bem melhores que os posts
- Nove dias
Escrever à mão só com a certeza de que não será passado para computador. Para mim perde o sentido. Como dizes passa a ser coisa mastigada, em segunda mão. E nunca sai da mesma forma. São escritas tão diferentes como as pessoas a que se destinam. Quando escrevo à mão, escrevo só para mim. É por isso que já há muito tempo passei a fazê-lo só aqui. Bonito…
escrever à mão continua a ser mágico. ver a caligrafia (ilegivel) encher uma folha branca continua a dar vontade de continuar. cada vez escrevo menos à mão, por preguiça, porque ao passar para o computador nada do que lá está faz sentido. mas continua a ser mágico. temos é de aprender a ser condescententes para connosco quando vamos dar aqueles momentos a um processador de texto. acho.
Não é estranho continuar a tentar apertar um casaco sem tecido, porque não é o tecido que queremos vestir, são as emoções que vivemos quando ele era um casaco por inteiro, com casas, botões e cor. Ilusões ? E a vida não é feita de ilusões e sonhos ? Que seria das minhas realidades se não fossem banhadas a sonho ? Seriam meras consequências de actos e palavras. Gosto delas como estão. Realidades pintadas de ilusões com a dose necessária de sonhos. Quanto a escrever à mão, concordo com a Duende.É a revelação directa da alma. E há conversas que são intimas, tão intimas que ficam de nós só para nós. Um beijinho e um casaquinho azul céu com botões de sol.
Eu adorava escrever à mão e ainda adoro, mas o trabalho mata a nossa caligrafia, ninguém quer relatórios, pareceres e outros que tais manuscritos.
Também já estou casado não mando cartas ao meu amor.
Das poucas vezes que escrevo à mão é nas férias, em postais para a família. É bom!
Concordo, acho que a escrita à mão é mais pessoal, mais intíma, é só pra nós, e tentar re-escrever tudo num computador não tem o mesmo sabor…
Infelizmente tenho cada vez menos tempo para esses “desabafos manuais”…
Magnífico texto mamã. Simplesmente magnífico.
Sinto que é a minha parte das trevas que escreve, não eu. E quando escrevo quero apenas libertar-me do que escrevo, jorrar o que sinto para o papel corrido pela caneta. Escrevinho, não escrevo.
Onde está a voz, a alma gémea, que me cicia ao ouvido os contos que me deixam contar? Porque não sinto uma mão amiga que me toque e me diga, na leve carícia, .vem por aqui.. E eu não tenho que olhar com ironia e cansaços.
E escrevinhar de onde em quando. E deixá-lo a alguém, dar tudo.
Adorei o post Catarina! Podemos sempre recorrer às mantas de retalhos. Pedacinhos que juntámos com tecidos coloridos de tempos vividos. Dão-nos sempre uma sensação de aconchego. 😉 Sou viciada em bloquinhos. Rabisco em todo o lado, está sempre à mão e funciona assim como apanhar imprevistos quando temos a máquina preparada. Um flash que disparou e antes que o trovão se faça ouvir fica escrito assim directo, preto no branco, sem tempo para pensar. Há uma química especial entre a mão que desliza e o papel branco a pedir atenção. Gosto de lhe dar vida com todos os devaneios alheios ao real, numa abstração a rasar a ausência do tempo e do espaço que nos rodeia…Local preferido será sempre pertinho do mar e muitas vezes atirando confidências à espuma que resolve o sonho escrito criando imagens que esboçamos. Xi
O texto esta muito bonito (eu nao faria melhor:))
Por estranho que pareça eu ainda escrevo muito a mao…