100nada

Dois em um

Sempre que oiço aquilo, lembro-me. Não é uma recordação nítida como um postal ilustrado. Para ver o desenho tenho de me esforçar. Mais como uma mancha na memória, sobre a qual é necessário aproximar o olhar até conseguir distinguir as formas.

Oiço o eco nos prédios em redor e, por momentos, a direcção do som escapa-me, até conseguir localizar o telhado vermelho, o muro de rede, as cores mais alegres de um escorrega. O recreio da escola primária, à hora a que os meninos brincam. É uma música desafinada, um coro de vozes infantis, um caos de gritos e risos, que misturados soam sempre da mesma maneira, seja em que escola for, seja em que ano for.

Faz-me dores de cabeça. Ou faz-me a recordação de dores de cabeça. É a primeira coisa que distingo na mancha da memória, a cabeça a doer, a tentar pensar, a tentar erguer-se de uma almofada que não conheço…

…estou deitada dentro de um aquário. Lá fora, os peixes gritam e riem-se atrás de uma bola, a descer por um escorrega, a discutir a vez nos baloiços. Cá dentro, a luz branca que passa entre as portadas da janela transforma-se num tom verde e baço, um aquário cheio de limos e cantos escuros, o som do recreio filtrado pelo silêncio do sono. Não consigo voltar a adormecer, esta almofada que não é minha não me alivia a dor de cabeça. Não sei se é do som dos peixes pequenos lá fora, se do único fio de luz branca que brilha entre o verde baço, directo à minha almofada, se bebi muito ou dormi pouco, nada faz ainda sentido senão o que sinto e o que sinto é a cabeça a doer cada vez mais. Café, penso eu, café já. Tenho tanta vontade que quase sinto o cheiro do café acabado de fazer, morro de vontade ver o fumo a sair da chávena, não quero nada mais senão aquele vago sabor amargo que quase desaparece na queimadura da língua.

Um dos limos do quarto verde (quem terá tido a ideia de pintar isto de verde? perguntarei eu mais tarde, depois de engolir duas chávenas, e respondem-me, já estava assim quando viemos para cá) dissolve-se e transforma-se num rectângulo de luz, recortado por uma figura que diz baixinho, fiz café agora mesmo, alguém quer? E o rectângulo de luz desaparece, sem esperar por resposta.

Levanto-me devagar, para não incomodar a cama e o dono. Encontro a roupa, visto-me e abro a porta. Um corredor comprido e branco, uma porta aberta ao fundo. Sigo o nariz até à cozinha e encontro uma chávena de café em cima de uma mesa. A outra está na mão de um rapaz que me sorri e diz ‘bom dia’. Não sei quem é, mas o café é irresistível. E no momento em que agarro a chávena e o desconhecido me estende um cigarro, penso, talvez me tenha enganado no quarto ontem à noite.

Ficamos em silêncio, os dois, um silêncio agora manso, os peixes acabaram o recreio. Lembro-me do aquário e pergunto sobre a cor, ele responde. Já me apetece perguntar mais, saber porque vieram os dois para esta casa, mas como nem sei quem são os dois, ou não sabia até ontem, até agora, prefiro ficar calada. E depois, é confortável este silêncio sem peixes, digo-lhe, ele ri-se, e pergunta, gostas? De quê? Digo eu. Peixe. Gostas de peixe? Se não berrarem logo de manhã, respondo e ele levanta-se e anuncia: vamos almoçar. Eu aponto vagamente para a porta, para o quarto-aquário, ele diz, cá em casa quem almoça sou eu. Ele só janta. Queres tomar banho antes de irmos?

[TrAmo-te, Psicologia Actual, 2007, não faço ideia do mês, logo vejo]

[na verdade era o princípio de um romance, mas oh well, já sei como eu sou, escrevi dois capítulos se tanto]

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