2. A crise financeira trocada em moedas de cinco cêntimos – A Bolsa de Valores Mobiliários
A Empresa Empresa Primos Sociedade Anónima (porque passou de uma sociedade por quotas para uma sociedade em que o capital é representado por acções, ie, uma sociedade anónima) tem agora suficiente capital para os novos investimentos e para contratar uma carrada de gente e começa em força a produzir coelhos, galinhas, alfaces e maçãs. É evidente que o sabor não é exactamente o mesmo, mas as galinhas e os coelhos são todos gordinhos, as alfaces e as maçãs são todas do mesmo tamanho e, de qualquer forma, já ninguém tem hortas ou galinheiros e coelheiras, porque estão todos a trabalhar para a Empresa Primos SA. A produção é vendida na Aldeia Regional Central (ARC) e a rapaziada vai toda lá às compras de novidades, quiwis e patos e mais uns quantos plasmas e LCD’s.
A Empresa Primos SA tem sucesso, aumenta a produção, investe mais, endivida-se mais e resolve até fazer aumentos de capital através da venda daqueles tais papéis que dão direito a participação nos lucros (dividendos), decidindo que não é preciso ter 51% da empresa para tomar decisões de estratégia e de implementação da estratégia (nas economias anglo-saxónicas, há uma Administração – que tem representantes dos donos da empresa, ie, os accionistas – que decide da estratégia e um corpo executivo que a implementa e cujo principal executivo se chama CEO (Chief Executive Officer), normalmente contratado pela Administração, aka, pelos principais accionistas). Nada disso. Já há tanta gente que tem acções deles, que arriscam aumentar mais o capital, embora fiquem em situação minoritária. Mas por um lado não têm capitais próprios para continuarem a manter os 51%; e, por outro, a pulverização das acções é tão vasta, que todos os outros são pequenos accionistas e nunca se lembram de se juntarem todos e ir à Assembleia Geral Anual votar contra alguma coisa em bloco. Até porque estão é preocupados com o que vão receber no fim do ano, de parte dos lucros da empresa que lhes vai calhar (os dividendos).
Mas todos estes donos destes papéis, ao verem que aquilo até paga alguma coisa todos os anos, resolvem que há mais empresas que também estão a vender acções. E vão lá comprar umas. Lá sendo um mercado onde cada empresa mete uns papéis à venda e, como os donos e gestores e trabalhadores não têm tempo de estar ali a vendê-los (esta parte efabulo, não faço ideia, mas deve ter sido assim, no início), há uns tipos especialistas, que sabem os preços de todas as acções de todas as empresas.
Mas essas acções são limitadas. Daquela empresa que está cheia de sucesso não há mais, estão todas vendidas, e o senhor Adosindo Silva, que tem acções da Empresa Primos SA, quer trocar de carro e precisa de dar uma entrada para um Audi6. E pensa “bem, tenho aqueles papéis, posso vendê-los” e vai lá perguntar se alguém lhos vende. O tal especialista, o corrector, responde, “olhe veja lá, até tenho dois interessados, que sorte já viu?” e o senhor Silva, que não é parvo, diz-lhe que se é assim, então que vende ao que der mais.
Portanto, aquele papel que na realidade valia imagine-se, um pneu de um camião de carregar coelhos (é preciso não esquecer que esse dinheiro são fundos para a empresa investir), agora vale o pneu e mais um x que o senhor Sousa quis pagar, só para ter ele aquela acção. Porque é que o senhor Sousa pagou mais? Porque acha que na realidade aquela acção vale dois pneus, já que pelas contas dele, a empresa vale mais do que aquilo que está na contabilidade, tem credibilidade, tem futuro, tem uma marca boa, ninguém mais vende coelhos, galinhas, maçãs e alfaces (tem o monopólio daquela área de negócio), enfim, porque quer pagar mais agora pelo papel que acha que vai valer ainda mais no futuro. Já o senhor Silva quis vender para dar entrada para o carro.
E mais gente compra aquelas acções daquela empresa excelente. Como toda a gente quer comprar e ninguém quer vender, o preço aumenta, porque quando há para vender, há sempre mais compradores que vendedores. Aquela acção vai subindo, apenas por força das expectativas das pessoas.
Só que
é preciso não esquecer a palavra Aldeia.
E, no largo da Aldeia, juntam-se um dia umas pessoas numa conversa mais ou menos assim:
– Ouvi dizer que a Maria dos coelhos está muito doente, coitada!
– Tu não me digas! Mas ela é que manda na Empresa Primos SA! Os outros primos fazem o que ela diz!
– Se ela se vai, aquilo não sei não…
– Por acaso, agora que dizes, ouvi dizer que as alfaces andam um bocado amarelentas!
– Ai é? Eu ouvi dizer que as galinhas estão cheias de hormonas…
– Caramba, e eu com aqueles papéis deles lá em casa.
– Olha eu cá já vendi os meus!
– Não me digas, vendeste as acções?
– Vendi e mais! O João da Esquina tinha-as vendido na véspera e conseguiu melhor preço!
– Epá isso é uma merda! Amanhã vou já vender as minhas!
– Caneco, eu também!
– E eu!
E, no dia seguinte, na Bolsa de Valores Imobiliários, as acções da Empresa Primos SA, que até aí, estavam a subir, com tantos vendedores e menos compradores, começam a descer…
E a Maria acorda, ainda não recuperada de uma brutal gripe, e não só vê as acções da sua empresa a descer no site da Bolsa, como, olhando lá para fora, vê passar a caminho do mercado da ARC, uma data de camiões TIR com alfaces, maçãs, galinhas e coelhos e uns caracteres esquisitos escritos ao lado…
(à suivre)
- 1. A crise financeira trocada em moedas de cinco cêntimos – A Aldeia Global
- Amanhã há mais!
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ahahahah
Cat, estou a adorar esta espécie de “Macro-economia para totós”
Olhe que é para ser entendido como um elogio, porque é preciso conhecer bem a matéria, para a apresentar assim.
Estou à espera do sub-prime, então.
Obrigada por estes textos divertidissimos.
Ni hao!
Carla, não me importo nada com a “Macro para totós”. 😀
Aliás estive quase para dar esse título a esta série. Não tenho problema nenhum em trocar conceitos por miúdos e a verdade é que tudo isto é muito simples: a malta que escreve sobre o assunto é que gosta de complicar, para parecer que é uma ciência secreta, complicada e só para alguns. :DD
O sub-prime, hum, estou a pensar numa coisa que comece mais ou menos assim:
“Lembram-se daqueles pobrezinhos da primeira parte, que metemos de lado? Aqueles coitadinhos *que nem casa tinham*?” :DDDDD
Miguel, Ni hao pra ti também!
Totó sinto-me eu de cada vez que leio alguém que escreve com uma linguagem absolutamente técnica e me vejo em palpos de aranha para conseguir decifrá-la. Mas acabo sempre por concluir que afinal o totó é quem tem dificuldade em descer do alto da sua mística e fazer-se entender pelos comuns mortais. Enfim, há os que sabem debitar e os que sabem comunicar. Nada a fazer. Será sempre assim.
Totózices à parte quero parabenizá-la e agradecer-lhe a paciência, simplicidade e humor com que desmitifica aquele que me parece ser mais um tabu. É como diz: não vai haver catástrofes a não ser para aqueles do costume.
Gostei da aula.
Muito bom.
eh pá, muito bom mesmo. eu sou mais do que totó e assim até dá gosto aprender, cat!
mal posso esperar pelo resto.
Oi gata (vc está vendo eu traduzindo seu nome para português?!), olhe só esta outra versão de sua história também muito bem contada, que um cara me deu no mail:
O seu Biu tem um bar, na Vila Carrapato, e decide que vai vender cachaça “na caderneta” aos seus leais fregueses, todos bêbados, quase todos desempregados. Porque decide vender a crédito, ele pode aumentar um pouquinho o preço da dose da branquinha (a diferença é o sobre preço que os pinguços pagam pelo crédito).
O gerente do banco do seu Biu, um ousado administrador formado em curso de emibiêi, decide que as cadernetas das dívidas do bar constituem, afinal, um ativo recebível, e começa a adiantar dinheiro ao estabelecimento, tendo o pindura dos pinguços como garantia.
Uns seis zécutivos de bancos, mais adiante, lastreiam os tais recebíveis do banco, e os transformam em CDB, CDO, CCD, UTI, OVNI, SOS ou qualquer outro acrônimo financeiro que ninguém sabe exatamente o que quer dizer.
Esses adicionais instrumentos financeiros, alavancam o mercado de capitais e conduzem a operações estruturadas de derivativos, na BM&F, cujo lastro inicial todo mundo desconhece (as tais cadernetas do seu Biu).
Esses derivativos estão sendo negociados como se fossem títulos sérios, com fortes garantias reais, nos mercados de 73 países.
Até que alguém descobre que os bêbados da Vila Carrapato não têm dinheiro para pagar as contas, e o Bar do seu Biu vai à falência. E toda a cadeia sifudeu !
Viu… é muito simples…!!!
Zé, lol
continua, continua
Só uma coisa a dizer: Bravo!
Isto é serviço público, devias ser paga.
Catarina, excelente!
(uma observaçãozita construtiva que espero não me leve a mal: não deveria ser Bolsa de Valores Mobiliários? É que os imobiliários são os prédios e assim, coisas que não se mexem com facilidade… desculpe o preciosismo mas sou do signo da Virgem e um pouquito obsessivo-compulsivo).
P.
sofia, tirou-me as palavrinhas da boca!!
Como diria o abade depois de uma lauta refeição: “estou satisfeito!” (agora só falta a sobremesa).
Zé, isso é mesmo o problema do subprime.
Cat,
A Drew Gilpin Faust que se cuide!
Oh, sei lá o que respondo, obrigada a todos, caneco.
Maria, obrigada eu pelo comentário tão simpático.
Clara, beijinhos.
Pal, por este andar já não sai nada hoje, lol!
Zé, brigáda, viu? Tá lindo isso daí! Tau e quau!
Cool, eu tento, eu tento!
Sofia, digamos que o que aprendi, foi enquanto me pagavam, creio que a coisa assim se compõe melhor 😀
Pedro, obrigadíssima pela observação construtiva! Mas como é que me fui enganar assim?! Que vergonha! Vou já alterar. Os Virgens são obsessivos-compulsivos? Diabo, estão explicadas algumas birras aqui de casa, mas quando crescem passa um bocado, não?!
Mermaid, és uma querida.
Espero bem que sim, Vítor!
JBP, quem?!
eu já sou crescido comó caraças e ainda não passou…
Logo vi que era coisa para a vida, mas enfim,ainda esperançada…
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Obrigada…
Lendo muito curiosa… afinal nem custa assim tanto perceber, relendo…. e chego lá… (devo dizer que fui fazendo um pequenino esquema para não me perder…).
Faço copy paste e lá vai no mail interno para os amigos e para os que não o são tanto, afinal partilhar é também pensar global, certo?
Flora
Flora, se me está a pedir autorização para publicar o meu texto para circular em email, agradeço que não publique o texto por inteiro, coloque a autoria e link para o texto inteiro. Ao abrigo dos direitos de autor, penso que é razoável.
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