100nada

Infantilidades

Quando eu era pequena (um gajo às vezes tem alguma chamemos-lhe pena)

Quando eu era pequena sabia exactamente o que queria ser quando fosse grande. Depois apareceu uma espécie de outro mundo, o de fora: a mim apareceu cedo ou então tarde, nem sei, talvez nunca tenha aparecido realmente, dividida que fiquei desde que entendi que
uma coisa são os sonhos que temos
outra coisa é a realidade que é
isso acontece a toda a gente

e depois, transformei-me neste gajo duro que também sou. Duríssimo, o filho mais velho de um filho mais velho de um filho mais velho de um filho mais velho e nem todos eram homens. Mas há sempre uma responsabilidade
tens de dar o exemplo
(nem que seja pela negativa, digo eu anos mais tarde, a rir)
desbravar caminho
e eu sem ser mas já tão mãe-galinha, mana-galinha chata
e depois vais fazer o quê com isso?
e eu: realmente, gosto imenso de outras coisas
são mais úteis e adaptam-se melhor até ao
desculpa que te diga, és minha amiga e gosto muito de ti mas do pescoço para cima tens um computador vazio de sentimentos
computador que tenho do pescoço para cima
e números são uma coisa gira
uma coisa certa
uma coisa que não tem dúvidas
chegam-me as minhas
podes ler tudo o que quiseres
tudo o que quiseres
tudo o que aqui estiver podes ler tudo o que quiseres
tudo e se não perceberes perguntas
e eu leio e pergunto
(Mãe: só não percebi esta parte, ela chama-se Cocaína, o que é isso? e a minha Mãe mete-se no carro, vai à Almedina e traz-me

lembram-se?
os abutres a pairarem sobre os corpos putrefactos
foda-se tenho onze anos e uma Mãe para além de todas as mães mas só entendo isso anos mais tarde,
o meu sobrinho de onze anos lê o Harry Potter
acho bem, eu também adoro
mas são outros tempos o que ele sabe agora não sabia eu na altura)
este post é só para mim, uma viagem ao mundo da memória
e vou lendo.

E um gajo, quando lê assim
filha os meninos estão todos a brincar e são os teus anos
se largasses o livro só um bocadinho?

ou se arma (e quase sempre ao pingarelho)
ou se desarma.

E quando se desarma
não sou muito de tiros que não acertem
entrega a espingarda
larga as palavras
atira-as fora por assim dizer
descarta-as
nem que seja escrevendo-as
de forma efémera
delével
e mantem o equilíbrio nessa dualidade
na divisão sistemática entre o sonho e a realidade.

0 thoughts on “Infantilidades

  1. mana

    Epá, mas o sonho é parte da realidade. Tudo são registos no pensamento: a memória, a opinião, o conhecimento, o amor, tudo. O sonho também. Se o pensas, é real. Escrevia um amigo num texto que aqui tenho: “A realidade é onde e como começam e acabam todos os outros sonhos, e por isso ela é um sonho maior. Um sonho maior de tristeza e um sonho maior de alegria.(…) No real de cada idade estão todos os sonhos e também está tudo o que fica aquém e além deles.” :-)

  2. Pruz.

    A realidade são essas argolas que sustêm o quadriculado todo, as folhas, que não as deixam voar. Estão ali quietas. À força.
    Rasgá-las?
    Não. Estão ali sempre. Voltam sempre para a realidade.

    Great text, darling!

  3. Eufigénio

    Catarina,
    Às vezes, saber escrever assim tão bem como tu o fazes, tão próximo do que se sente, implica uma enorme coragem. Quase não fica nada a tapar-nos. E neste caso, nisto de escrever/ler, terão sido muito poucas as vezes em que alguém me levou “tão perto de si”, e de forma tão sincera como esta que eu hoje aqui li (de ti)

  4. Andy

    O José Quintas roubou o restinho que ainda poderia dizer. Muito bem!

  5. vieiradomar

    Que maravilhoso texto umbiguista! Está muito, muito bom, Cat. Gostei imenso (agora, vou ler outra vez). ganda beijinho! :)

  6. Susana

    Já tinha saudades de te ler assim.
    Adoro quando chego ao fim e dou por mim de boca aberta a pensar “só mais uma linha, por favor…”.