Da ausência de receitas
[rascunho de ideia vaga]
Na verdade, são duas, as ideias vagas: uma mais ideia, a outra mais vaga. Esta última sob a forma de vontade quase irreprimível de ter escrito um post psico-culinário, que consistiria na descrição completa da minha tarde de domingo na cozinha, misturando chocolate, claras batidas em castelo, nevoeiro a cair de repente e considerações várias sobre a vida, a utilização de bimbys, a maneira mais simples de partir ovos sem deixar cair cascas para dentro das claras e de agarrar formas de silicone sem entornar o conteúdo: receitas, enfim.
Não o escrevi, mas terei ficado com essa parte das receitas em banho-maria, por assim dizer, o que me levou à outra, a ideia. Essa não foi, de todo, vaga, sei exactamente quando é que me caiu em cima: enquanto descia umas escadas para ir tomar café à esplanada com vista para o estacionamento, onde na mesa ao lado se bebem martinis a meio da manhã e o arroz é com pato.
Lá por me ter caído a ideia em cima, não quer dizer que viesse já com todas as palavras, como é evidente. As ideias não são assim, mesmo quando são directas ao nervo do formigueiro nos dedos. Caem e depois um gajo que se lixe, a tentar que não fiquem todas coladas às sinapses, como se fossem pastilha elástica, um bocado em vão, porque a única forma de as arrancar dali para fora é – para mim – enfiá-las em qualquer lado, traduzidas em letras e frases. Normalmente a amiga mais perto leva comigo em cima, mas algumas são mais de se escreverem. Enquanto aqui engonho e já lá vão três parágrafos, as ditas começam a parecer-se mais com coisa passível de escrever.
Vai tudo dar às receitas. Ao mesmo tempo que a mim me apeteceu escrever sobre um domingo na cozinha, coisa palpável e realizável, que se come inclusive e que se faz seguindo (mais ou menos) uma receita, a coisa que me ocorreu ali naquelas escadas, é que eu estava – estou – virada para a realidade das coisas existentes, dos assados e bolos (sempre fui mais bolos) [quer na escrita, quer na leitura aliás]. Ou – e aqui está a ideia, de repente tão clara – teço realidade seguindo receitas, mas para o resto não há. Não há receitas. No que escrevo, não há receitas, na vida não há receitas, tirando as dos bolos e das nódoas mais chatinhas. Nem no que os outros escrevem, pensei eu melhor e nessa altura já estava a pedir uma bica e um copo de água, nem no que os outros escrevem há receitas! Tanto faz eu escrever sobre a nuvem que passou pela janela, responsável por uma taça de claras cheia de cascas, como escrever sobre a imensão de sentimentos que se nos atravessam em momentos de lucidez abstracta iadaiada, porque não há receitas. Nem respostas sequer.
O que pode eventualmente haver é consolo. Solidariedade em coisas parecidas ou aparentemente semelhantes. Não há setas apontadas a dizer “vai por aqui”, só há, quando muito “eu fui por aqui e resultou assim”. Coisa que é perfeitamente inútil para quem procura uma direcção, porque cada um tem as suas, que não são de mais ninguém e até me parece um bocado perigoso dizer “vai por ali que vais bem”. Sei lá eu. Mas também não sei, a verdade é essa, se há pessoas que precisam mesmo de saber que por ali vão bem. Ou por outra, sei que existem, sim, muitas. É mais simples. É menos responsabilidade que se toma, se forem os outros a aconselhar. Custa menos na altura, é um facto. Mas não significa que seja realmente o caminho certo. No fim, provavelmente, custa muito mais.
Peguei na receita do bolo de chocolate e fiz outra coisa com ela. Parecida, sim, para primeira vez, para ver como é que ficava. Resultou, podia não ter resultado. Depois caiu o nevoeiro que estava antes sobre a outra margem. A temperatura desceu abruptamente, dez, quinze graus e lembrei-me que ainda faltavam os morangos. Um silêncio quase absoluto em casa, com sestas e jogos amenos de dia de repente cinzento mas nem por isso menos de verão. E agora reconcilio-me com a minha escrita desprovida de respostas. Não as tenho, ninguém tem. Por mim tudo fino, que haverá sempre mais bolos, caixas de cerejas, água a correr.
- e agora vamos lá ao que interessa
- Offline e seguindo assim
Pingback: Catarina Campos
Cat, vale a pena a gente esperar, mesmo quando o blog parece parado uns tempo, para depois apanhar com um texto destes! Consola por termos esperado.
Escuso de dizer que está excelente, sabes isso, mas apetece repetir mesmo aquilo que já sabes.
Excelente!!!
A coisa é que, em momentos de maior desconsolo, a melhor coisa que se pode ouvir é algo como “eu também já passei por isso e agora estou aqui”, por isso é que os melhores conselhos vêm de pessoas com mais experiência e que não dizem “faz assim” mas sim “eu fiz assim e correu bem (ou mal)”. Já os grupos de apoio de viciados funcionam nessa lógica e é o que acaba por funcionar com a maioria das pessoas, não sei porquê mas é vendo nos outros que acabamos por acreditar para nós.
Olhamos para quem vai à frente e estendemos a mão a quem vem atrás.
(tens um nervo do formigueiro dos dedos do caraças!)
Para já um sorriso.
* Tenho cozinhado muito, ultimamente.
Passei-te o Desafio “Tá a Filmar” …!
O desafio consiste em escolher cinco situações da vida
para passar em câmara lenta.