100nada

Pregar uns parafusos

Há uns anos conheci um tipo. Fomos amigos durante um tempo, depois a vida e o resto que separa as pessoas, meteu-se pelo meio e fomo-nos desaparecendo um ao outro. Calha.

Esse tipo tinha um dom extraordinário. O de pegar nas palavras e de as escrever de forma absolutamente perfeita. Poderia ter sido escritor. Um dos melhores. Tinha tudo o que é preciso: o dom da escrita, a bagagem cultural e o conteúdo de uma vida riquíssima em emoções, sentimentos, uma alma pejadinha de merdas. Tinha outras coisas que eu também aprecio na escrita, mas isso já será gosto pessoal, um cinismo poético, uma forma totalmente céptica de ver o mundo com uma imensa vontade de que fosse ainda inocente. Em resumo, o tipo escrevia mesmo bem.

Mas não escrevia de facto. Ia escrevendo, como todos nós, umas coisas. Não seria por falta de vontade, que a escrita escrevia-se nele como o ar que se respira, mais a falta de outra vontade, aquela que – imagino apenas – têm as pessoas que querem ser escritores. Imagino apenas, vagamente, por ter olhado para esse lado, um dia, umas horas, não mais e ter encolhido os ombros e pensado, falta-me isso, essa vontade quase fuçanga, essa forma de levar tudo à frente para se conseguir o que se quer. Não tenho, esse tipo também não tinha. Não me comparo, estou a anos-luz desse dom, dessa escrita luminosa, mas entendo.

Esse tipo queria ser outra coisa qualquer. Era o que lhe dava gozo. Vamos imaginar, para efeitos da história, que esse tipo queria era ser sapateiro. O que ele gostava mesmo era de colar capas, pregar solas, coser cabedal. O que ele gostava era de ser sapateiro. Não era o sapateiro melhor ou mais conhecido da praça, mas os sapatos saiam-lhe realmente bem e, enquanto ali estava, sentado no seu banco agarrado às suas ferramentas, era, de alguma forma, feliz. Muito mais feliz do que quando escrevia, que fazia apenas para não sufocar, para que esse ar não lhe faltasse. Porque os sapatos, vejam se entendem, os sapatos, ele fazia-os realmente bem. E a escrita (achava ele, eu discordei sempre) não lhe sairia tão bem como os sapatos.

Na verdade, esta história é uma cebola e esse tipo, que queria ser sapateiro, quando era mais novo, o que tinha querido ser era cozinheiro. Ainda fazia umas sopas e uns assados, mas realmente nisso não era – e reconheceu a tempo – nada, mas nada bom. Era um excelente garfo, adorava pratos de todo o género, conhecia imenso de cozinha. Mas não tinha jeito nem mão para o sal e os temperos e os tempos e nada mesmo. Então terá pensado, prefiro ser um bom sapateiro que um mau cozinheiro. Escolha sensata, quando a mim.

E a escrita? Ora essa, que se faz como se respira, para não sufocar, que eu insistia “não, tenta, vai, faz, escreve, és mesmo bom nisso”, essa? Essa, uma pessoa aprende – ou calha – respirar outra coisa qualquer e as palavras deixam de ser necessárias, já não são precisas.

E, de alguma forma, livramo-nos delas, talvez até com alguma pena, mas de certeza absoluta com alívio.

0 thoughts on “Pregar uns parafusos

  1. e eu entendo-te a ti, completamente. aliás tens uma capacidade prodigiosa para te fazeres compreender assim, com esta tua escrita. e não te devia dizer isto, mas sempre achei que a tua escrita tem este toque de espontaneidade justamente porque ela se te descola do corpo com que desfias a vida feita sapateira, e não porq. pena e alívio são sentimentos que oscilarão em ti sempre, enquanto vais e folgas da tua vida de sapateira. por isso não me queixo quando paras de escrever, queixo-me quando nunca mais voltas com a tua escrita contando das tuas sapatarias!

  2. (saltou-me o dedo, eu ai ai ai e pimba publicou-se isto sem querer. e eu que nem sei se iria fazer enter nisto caneco. mas pronto, já que está, ao menos que fique todo. há ali um texto interrompido que diz “porq.” … a ideia é colar-lhe “porque tu a obrigues”)

    beijos Catarina

  3. manchinha

    o jeito para as palavras pois nasce connosco parece-me não desaparece o que é pior porque se intrusa no resto da vida mesmo que não nos apeteça ser essa coisa de quem escreve escritores e agora não vamos todos virar escritores ora bem

  4. Florença

    Às vezes um gajo levo uma vida toda a colar sapatos, a querer admitir que afinal até gosta de colar sapatos, e foge-lhe a coragem (a maioria das vezes é o ócio a entranhar-se pelo organismo e a paralisá-lo de todo) de concretizar um talento – um género de outra vida (um vírus, talvez) que nos vive dentro da alma, que nos mantem a aspiração de um dia concretizar essa disposição, e que, apesar de nos puxar e repuxar as entranhas, não nos cega ao ponto de conseguirmos prescindir do negócio dos sapatos – o Comodismo, SA.

  5. Clara

    O Sr. Sapateiro ao qual, suponho, que podemos (e devemos) agradecer o facto de poder ler textos assim.
    Um hobby que se torna profissão é chato, torna-se opressivo. Nunca li nada dele mas devo dizer que concordo, que uma coisa feita por absoluto prazer e sem strings attached, só porque apetece é muito boa.

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