Há coisas que só se escrevem uma vez na vida
O meu Pai
O meu Pai é o homem mais direito que eu conheço.
Como é que se define, como é que se escreve um Pai? Como? Desaparecem as palavras à medida que as memórias se atropelam, não chegam a tempo as palavras porque já estou no outro lado do mundo.
Imagino, porque não sei se me lembro, não me lembro, mas vejo, é tão estranho, quase que poderia descrever a roupa, como as vejo a elas as duas tão pequeninas a fugirem pela pista fora, e eu, a mais velha, a ajudar a carregar um dos muitos sacos e a minha Mãe e as filhas a reencontrarem o homem da casa na primeira (não, não foi a primeira, mas é como se fosse) das centenas de despedidas e reencontros da nossa família; tinhamos vestidos côr de laranja de tricot feitos pela Mãe, com uma risca branca na bainha – e nas mangas? não me lembro, mas trocámos de roupa na casa de banho do avião e afinal aqueles vestidos eram quentes demais para aquele país, mas tinhamos chegado, estavamos juntos e o meu Pai estava lá, tinha ido primeiro
no livro de fim de curso há um verso que diz que iria para lá um dia
e foi.
Eram tão novos, meu Deus, mais novos do que eu sou agora.
Todos nós aprendemos desde muito cedo a despedirmo-nos. Habituarmo-nos à ausência e à constante presença na ausência. Não sei como é que os pais conseguem dar isso aos filhos, mas conseguem: que se sintam sempre seguros, sempre amados, que os pais estão lá sempre, mesmo que estejam do outro lado do mundo. No meio do turbilhão que foram quase todos os anos das nossas vidas, mesmo nas alturas em que me senti mais perdida, nunca me senti desamparada. E, no meio do mulherio, muitas vezes desvairado, o meu Pai era (e é) a presença sempre calma, sempre cerebral vá lá filha vamos lá ver isso com calma, vamos lá reflectir sobre isso; vamos.
(estou a misturar tudo, as palavras estão aqui e o resto já vai além): vamos falar sobre isso e depois pensas o que queres fazer, no fundo é isso. É tão simples: falamos e depois tu pensas.
O meu Pai fez de mim uma criatura independente. Ensinou-me uma data de coisas, sem precisar de dizer nada, só pelo exemplo: as obrigações e os deveres, o pensamento analítico, o valor da calma (que não domino nada bem…), o domínio sobre si mesmo. Ensinou-me a conversar e a desconversar, mostrou-me a ironia, o sentido de humor, a beleza das árvores, ensina o meu filho a plantar. Aprendi que o amor não precisa de ser dito alto, que pode ser um passeio por um caminho; às vezes em silêncio, outras a dizer estás a ver aquela, já tem trinta anos, não se nota nada, parece uma árvore pequena ainda, o miúdo é um bocado teimoso, tens de ver isso, já trataste dos impostos? ó filha, francamente.
O meu Pai é o homem mais direito que eu conheço. Tem tentado toda a vida fazer de nós pessoas direitas.
Obrigada, Pai.
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