100nada

dedicado a um crocodilo

É curioso imaginar que quase conheço um crocodilo que quase me conhece muito bem. Como se não fosse preciso muito mais do que ter um comprimento de onda parecido, que vai agarrando uns zzzzztttt zzzzttttt e vai traduzindo, mesmo sem palavras, mas entendimento. Mesmo que o crocodilo prefira chuva e eu sol, mesmo que eu não perceba nem metade, mesmo que se passe muito tempo.
Há pessoas – e crocodilos – que quase nos conhecem muito bem. E são muito poucas. Dedicamos posts a dizer que

a dizer isso, isto, basta isto, não é preciso mais.



Timelines paralelas

O facto de me parecer que só uma realidade é pouco, não faz de mim doida varrida, só um bocado estranha, já que quase toda a gente sabe que só há uma realidade e planos superiores de alma, com santinhos a entoar hinos e o caneco. Adiante, sobre isso estamos conversados, é como os dragões que não existem e os anjos que só são invisíveis, cada um com as suas convicções e as minhas metem outros planetas habitados, universos paralelos, realidades sobrepostas, elefantes voadores deixados para trás em ilhas perdidas, ratos oportunistas em eternas jangadas e anões que vivem dentro dos cabos eléctricos. (Sim, a invasão intergalactica também, a ver se nos lembramos do nosso pequeno planeta nos últimos microsegundos do ano do universo.)

Há umas realidades paralelas (estas minhas agora, podem ser outras noutro post, o bom desta religião é que não há regras senão as de alguma coerência dentro da teoria) que são faixas de auto-estrada a diversas velocidades temporais. Nesta faixa onde estou a escrever é assim, noutra faixa não é assim, nada de novo aqui, nem no resto, aliás. Eu (para efeitos descritivos, não é eu-eu, é qualquer eu, o gajo que lê, o que já clicou no X, não interessa) eu estou nesta realidade temporal a esta velocidade, mas não estou. Noutra-eu não estou a esta velocidade. É isso que interessa. Não exactamente relevante para este eu, mas conta para o todo que eu não vejo. (Na medida do grão de areia no deserto, mas conta.)

E como é que conta se não vejo? Muito simples: não estou à mesma velocidade em cada faixa temporal, mas a paisagem é a mesma.


50 anos

Passadas umas semanas, aqui segue o balanço provável, ainda a quente, que é como se devem tomar estes comprimidos difíceis de engolir e se servem as melhores vinganças.

Fazer 50 anos não custa nada, é tudo igual, dizem-me, quem por lá passou antes de mim. Obviamente é tudo igual, uma pessoa não envelhece de um dia para o outro, demora uma carrada de anos, neste caso concreto, cinquenta, mas sempre me pareceu coisa meio merdosa de auto-ajuda, misto de pensamento construtivo e avestruzice, a ver vamos, quando lá chegar, mas um bocado desconfiada e com razão. Não custa nada fazer 50 anos, dizem-nos, como quem diz que não custa nada ter um filho ou arrancar um dente, essas frases que só consolam enquanto não se está toda estraçalhada a berrar por mais morfina e a mandar para o real caralho toda a gente carregada de boas intenções e falta de realismo.

Lamento informar mas não é nada disso: fazer 50 anos é uma grandessíssima merda e quem não pensa assim ou pensou quando lá passou, só posso concluir que já lá estaria antes, muito anos antes de os fazer e teria todo um tempo extra de velhice nos trinta e quarenta para se ir preparando com antecedência.

Fazer 50 anos é deixar de ter 40, para começar. Uma pessoa demora aí uns quinze anos a habituar-se a estar nos quarentas e, quando está quase perfeitamente confortável e a achar que é excelente, passaram dez num instante e trau, leva-se com a porra da idade nos cornos, com todo o peso que isso acarreta. É provável que isto não se aplique a homens, a verdade é que os filhos da mãe envelhecem com imenso charme, ficam mais giros com cabelos brancos e rugas, os cabrões, é uma coisa muito injusta e provavelmente explicável por uma qualquer teoria de darwinismo misógino, talvez a memória colectiva feminina do tipo da caverna com mais capacidade de sobrevivência e um visa com um plafond razoável para calhaus e lanças de madeira e nós, gajas, somos muito sensíveis a memórias genéticas e outras merdas hormonais.

Adiante. O que se aplica às mulheres é que o universo não está preparado para mulheres de 50 anos no início do século XXI, porque essas nasceram no século passado. As miúdas de agora não vão sofrer nada disto, mas nós, quando éramos miúdas, 50 anos tinham as nossas avós e já usavam plix. É toda uma educação que aponta para o suposto de uma senhora de meia idade, cabelos curtos pintados de lilás, sapatos sensatos e atitude posta por ordem. Claro que agora já não é assim, mas era assim há 40 anos e as memórias de infância não se evaporam e ficam incrustadas no disco limpinho que era o cérebro dessa época, até porque, com o avançar da idade, nos lembramos melhor dessas coisas do que aquilo que almoçámos ontem, não é?

O universo não tem muita paciência para levar com alterações de fundo e nós também não queremos mudar o mundo aos 50 anos, aborrece e dá trabalho; daí ser uma grande maçada ultrapassar o trauma psicológico daquilo que nos puxa para sermos como aquilo que apreendemos cedo que seria suposto e aquilo que realmente somos, que é basicamente as mesmas miúdas, um bocadito mais velhas e com mais propensão para séries de gajas, estrelas nos hotéis e os efeitos da lei da gravidade.

Fazer 50 anos é, volto a dizer, uma grandessíssima merda. É daquelas coisas que acontece a todos, como queimaduras no fogão, avarias no carro ou mau sexo, que se aguenta com alguma dose de vernáculo e pensando que da próxima correrá melhor. Vá lá que, felizmente, neste caso concreto, só acontece uma vez na vida. E ultrapassa-se, claro, agarrando o universo por um braço, olhando-o de frente e explicando muito direitinho que, se não quer levar um biqueiro nas convenções, é melhor aprender rapidamente que não é assim que se fode gajas como nós.


New Order

Tinha o braço partido e guiava. Era o que causava mais espanto (nessa idade tudo é extraordinário) e algum, não, não era medo, nessa idade nada mete medo, a voar pela auto-estrada e de braço – direito – partido. Não fazia diferença, nem ali nem noutro lado qualquer.
Havia música (de todo o tipo) muito bonita e estranha, de adultos, de pessoas mais velhas que apreciam coisas alternativas, música ou pessoas. A alternativa (pessoa) nas tintas, as alternativas têm sempre uma vantagem, sabem mais e, sem medo de nada, a indiferença pelo resto (todo) é total.
De braço partido passou para quase úlceras (angústias de quem não tem unhas para se meter em merdas) e, na inevitável despedida, apresentou-lhe (já pelo correio, entre cartas a acenar que ali estava, ainda à espera de um dia mais favorável à tomada de decisões) uma cassete com, ao menos fique com a minha música! uma colectânea de Joy Division e New Order.


O mesmo verão

Todos os verões são o mesmo verão. Como todos os invernos e resto (uma mistela de chuva e mais merdas, esse resto e até com dias lindos e coisas fixes) são também sempre o mesmo, só mais comprido. Mas, para mim, há verão e ausência de verão e, quando acaba essa parte do não-verão, recomeça o mesmo verão do ano anterior, de todos os anos anteriores.
É muita arrogância nossa, pensarmos que o tempo (que inclui esse mesmo, apenas interrompido, verão) passa. Dizemos “o tempo passa, voa”, mas nós é que passamos, voamos, o tempo (e o verão) ficam para sempre. Nós não.

(Mais uma vez esta porra escreveu-se sozinha enquanto eu estava a pensar noutra coisa completamente diferente)


No trânsito

Uma das boas opções que fiz nos últimos tempos, para melhorar a qualidade da minha vida, foi deixar de ouvir rádio e notícias no carro. Custou-me horrores, quem me tira a TSF de manhã arranca-me uma parte do dia que gosto muito. Não só entretém e distrai do trânsito, como se fica a saber o que se passa de notícias. Continuo a achar que a TSF é a melhor rádio que temos e o período da manhãzinha é muitíssimo bom; nada contra a TSF, portanto.

Mas a minha saúde mental já não aguenta mais notícias sobre as mesmas merdas. Atingi o meu limite de notícias nacionais. As notícias nacionais (e agora indo para além da TSF, obviamente) são invariavelmente políticas ou politicamente usadas / cor de rosa que não me interessam minimamente / ou Google translated copy e pastes de coisas que já saíram há uns dias noutros lados. Cada vez que ligo o rádio, cada vez que abro um jornal (notícias na televisão já deixei há muito) parece-me que estou sempre a ouvir a mesma peça ou a ler a mesma notícia. Não sei se é mal dos media, se é mal dos acontecimentos ou se, pura e simplesmente, o mal é meu. Como nos casamentos e afins falhados, deve ser todas as coisas ao mesmo tempo, eu e notícias não nos estamos a entender por absoluta falta de interesse. Meu, claro, o mal é meu.

Já que que não aturo mais notícias, o melhor é cortar o mal pela raiz e desligar o radio. Se calhar perco outras coisas giras, anúncios temas de converseta ou aqueles mini programas sobre empresas e parcerias e novidades e bolsa, mas tem que haver uma continuidade: ou se liga o radio ou não se liga o rádio. E ouve-se música, muita, muito alto e, ali naqueles momentos, um gajo abstrai(*).

(*) abstrai tanto que nem posts, só postalinhos destes


No semáforo vermelho

Não é que não continue a parar nos semáforos vermelhos, mas há sempre uma vaca apressada que nos apita se paramos nos amarelos. A buzina, o espreitar pelo espelho para verificar se é mesmo uma estúpida que nos está a chamar nomes e a fazer gestos de e porque é que paraste, besta cretina? (essa sou eu, a que que parou), a verificação da inutilidade do esforço da bovina criatura (essa é ela, a que também parou, por minha causa) e tudo o mais que se segue a essa buzinadela, incluindo algum vernáculo mental dedicado a vacas apressadas, nos retira do estado de meditação necessário à elaboração mental de mais um texto sobre essa estranha qualidade efémera, quase fantasmagórica, daqueles nos vão passando à frente e depois desaparecem.

No entanto, quando não distraída com buzinas, encontro essa mesma qualidade em quem passa, a de aparições, não apenas pela sua natureza passageira, mas como característica intrínseca: como se não passassem de corpos sem conteúdo e rostos sem expressão. É isso que mais lhes reconheço, o distanciamento do que os rodeia, a indiferença pelo que está ao lado, tal a concentração no que vai dentro. E se é indiferente (para mim, reconheço, é) que fantasmas desconhecidos não se vejam uns aos outros, já não me é indiferente que apenas pairem sobre os riscos das passadeiras, porque se torna difícil imaginar/inventar histórias de pessoas sem aparente existência.
E zombies não aprecio por aí além.


Coisas de gaja

(Este post parece cretino e é; mas tenho centenas de drafts no blog, resolvi reciclar: deste aproveitou-se o título – generalista – e o vídeo, que adoro, mesmo todo fora de sítio* e que merece um post melhor, há-de ser noutro dia)

Ah e o post é “enviado do meu iPad”, no browser, a app uma bosta, não abre.

* lá chegarei, ao theme e CSS


Como andar de bicicleta

Escrever é como andar de bicicleta. Uma pessoa aprende, começa, segue por ali fora e ainda faz umas habilidades. Parece simples, para quem nunca deixou de andar de bicicleta e um dia resolve que aquilo são favas contadas. Está ali a bicicleta, com carradas de quilómetros em cima, um gajo enche-se de memórias de descidas com vento na cara e sem mãos e sem pés e sem travões e quando salta para cima da bicha, a dita dá-lhe uma birra e desequilibra-se toda. Não é nós, que nós sabemos andar de bicicleta desde que nascemos, é a cabra que foge debaixo dos pés, deve ter um qualquer coiso fora de sítio, está torta, talvez, desajustada, os pneus vazios, deve ser isso. E um gajo sem querer dar parte de fraco, já o resto das pessoas vão lá adiante, vão andando que já lá vou ter, é só apertar aqui a corrente. E voltar a tentar equilibrar-se e conseguir meter os dois pés nos pedais sem aquela porra cair para a banda, agora que já não está ninguém a ver. E aos sacões, lá se vai andando, amaldiçoando a estúpida ideia, que já nem se tem idade nem pernas, que se estava muito melhor no sofá, que amanhã é que vão ser elas. E sempre, sempre, por ali fora, com uma única ideia, uma: não é medo de cair, isso não acontece, afinal é como andar de bicicleta: é o ridículo, é a figura de urso, é a figura que faz o gajo que andava sem mãos e sem pés e agora vai pedalando a custo, só porque enfiou uma ideia na cabeça.