100nada


Palavras laminadas

Às vezes um gajo está nesta coisa, ora então vamos lá alimentar o bicho e enquanto faz uma coisa e outra e corta uns bifes, é engraçado, antigamente não gostava nada de mexer em carne crua, que não-me-toques, pachorra! Arranjei um afiador de facas. É bestial aquilo, um instrumento comprido de metal com um cabo, agarra-se no cabo com a mão direita e com a esquerda na faca e raspa-se a faca no afiador e, por momentos, sou um talhante (tinha escrito primeiro carniceiro mas de repente a ideia ficou outra, muito mais negra) de avental cheio de sangue, a afiar gumes e sempre com uma vontade inexplicável de passar depois a faca por um dedo (esta paranóia de passar lâminas pela pele é muito seventies, não é? Ou sixties se calhar, não sei, não me apetece ir ver ao google, prefiro ser a tonta ignorante de sempre que mais um palhaço que tempera posts com referências), mas nunca passo, claro, que, apesar de tudo, tenho mais tento que isso. Cortar carne crua é uma actividade que, parecendo não ser, é muito limpa. Ou contribui para que os bifes fiquem mais limpos, pelo menos…e estou eu a cortar bifes ou a tomar café numa esplanada, mas lá dentro, porque é quase noite e está um frio de merda e a esplanada nem tem as mesas de qualquer forma, um café à pressa para comprar cigarros, um bicho solto da jaula e pego num jornal. Nunca me ocorreu pegar num jornal e todos os dias lá vou. Mas pego, não me apetece não pegar num jornal, pego e abro-o e leio exactamente uma página e meia até acabar o cigarro e dobrar o jornal. Mecanicamente dobrei o jornal ao meio, mas na prateleira dos jornais ao lado da arca dos gelados encostada à parede com o espaço exacto para me esgueirar e meter as moedas na máquina dos cigarros, os jornais estão todos direitos, amachucados de um dia de uso, mas direitos, não estão dobrados ao meio, também já não desdobro aquele. Mas penso, devia desdobra-lo e alisá-lo, para ir para o lixo depois, que já ninguém o vai ler a esta hora…e lembro-me da rapariga que todos os dias lá está a ler o jornal. Sei quem ela é, sei a vida dela porque teve a miséria de descasar de um político, alto, bom som e alguns pratos partidos, de janelas abertas para a vizinhança que se pelava pela novela ao vivo da hora de jantar. Não assisti, mas tudo se conta em esplanadas quase vazias. O bicho à solta sai da esplanada e dobra a esquina do jardim para o lado onde o vento sopra com força e o cabelo voa para todo o lado. E aquele cabelo a bater na cara, aquele pensamento mais valia cortá-lo, aquele momento mais valia não escrevê-lo, desfaz-se depois no afiador de facas, enquando as lâminas se afiam e os posts se desfiam.








Xadrez

(algumas pessoas que por aqui passam já conhecem isto, mas lembrei-me agora, depois de ler o post sobre xadrez do Sharkinho.)

Chamo-me Wolf, Wolf Ang filho de Wolf Ang filho de Wolf Ang, dos Angs que os Senhores conhecerão por certo. Somos uma família tradicional de raízes profundas que vive à margem dos acontecimentos que preocupam os Senhores e não incomodamos ninguém nem gostamos de ser incomodados com assuntos que não nos interessam. Não costumamos andar sozinhos mas de tempos a tempos há um membro da família que se aventura por outras paragens à procura de não se sabe bem o quê e não regressa enquanto não encontrar. Até agora todos os Angs que partiram nunca voltaram não sabemos também porquê. Um Ang nunca desiste mas admitimos que só saibam o que querem encontrar quando encontrarem e talvez não tenham encontrado ou talvez não tenham reconhecido. Seja como for é a minha vez agora.

Somos pacíficos por natureza se ninguém se aproximar de nós.

Neste estranho lugar onde estou agora cruzam-se várias vozes e pensamentos desconexos e perdidos que não causam qualquer interesse a um Ang, palavras ocas de filhos de homens sem raízes. Mas hoje vi uma coisa que me fez parar. Um desafio. Eis uma palavra que interessa a um Ang.

Os Angs gostam de jogos. E gostam de xadrez. Acham um jogo curioso intelectualmente se bem que o princípio seja incompreensível. A um Ang é inconcebível que um Rei faça primeiro avançar a ralé e depois se esconda em curtas passadas atrás de saias de bispos, cavaleiros e principalmente da saia da Rainha. Os Angs avançam sempre à cabeça das suas forças deixando em lugar seguro as suas damas. O objectivo do jogo é matar um Rei cobarde através das tropas de outro Rei igualmente cobarde. Um Ang não compreende a existência de reis cobardes. Os Angs não mandam ninguém fazer por eles aquilo que tem que ser feito.

Wolf Ang, pt.conversa, Fev. 2002