Quando eu era mesmo muito pequena – é engraçado como as obsessões se podem tornar inspirações ou então é essa inspiração, chamemos-lhe assim, de infância que se pode tornar numa obsessão e
também é engraçado que outras inspirações apareçam de repente
ou sem ser de repente (que me me dás vontade e me fazes escrever, é um facto)
e essa recordação seja agora muito nítida, cada dia mais cristalina: quando eu era mesmo muito pequena, o meu bisavô tinha uma casa de férias na Figueira da Foz.
As recordações de infância são uma espécie de puzzle antigo; lembramo-nos de algumas peças soltas, o resto preenche-se com as recordações dos adultos, mas sabemos sempre quais são umas e quais são outras. Conseguimos contar a história com todas mas, enquanto as outras são vagas e apagadas, as nossas mantêm a mesma côr (embora possamos não o saber até aparecer alguma coisa que as pinta de fresco outra vez).
Quando eu era mesmo muito pequena e o meu bisavô tinha uma casa de férias na Figueira, eu passava lá férias (até lá vivi durante uma altura, mas é das férias que esta peça trata). A casa, que eu nunca mais vi e sei que ainda lá está, mas nunca mais a vi, não é bem não querer voltar a ver, não é exactamente nunca calhou; é nunca mais a vi e talvez seja melhor assim, era (deve ser ainda) enorme, com imensas peças espalhadas: matar formigas na passadeira branca que se colocava sobre a passadeira boa nas escadas, as formigas muito pretas em fila sobre aquela superfície branca e eu a esmigalhá-las com o dedo, uma a uma; caracóis nas couves da horta e uma mata do lado de lá do caminho que subia do portão com uma casinha que eu imaginava sempre ser a casinha da menina (princesa?) curiosa, aquela que não descansa enquanto não destapa a coisa maravilhosa tapada que não podia destapar, embora soubesse que aquela casinha era só uma estufa; as costas do sofá para onde trepei quando a televisão mostrou o homem a chegar à lua e os tios todos a verem, a camarata das primas crescidas onde eu também dormia, o copo à cabeceira da cama com o bichinho de luz que se transformava em moeda de manhã; é só começar a lista e nunca mais acaba, é talvez por isso que nunca mais a vi, a essa casa.
A casa tinha uma entrada. Uma daquelas salas que só servem para conversar à saída, nas eternas despedidas de família em que se fica quase tanto tempo como o que se esteve no tempo durante, uma sala com uma porta para o jardim, varanda, alpendre a toda a volta, dois degraus, jardim, socalcos até à rua do lado da frente (roseiras? e eu dei com um martelo pequenino nas costas do jardineiro, que raio de ideia teria sido a minha?) a minha Mãe de óculos escuros sentada nos degraus nas fotografias com as filhas à volta (mais peças) – eramos mesmo pequenas.
Na entrada só havia uma mesa a meio. Uma mesa enorme.
(ou então havia mais coisas, uns vasos, umas cadeiras, não interessam)
E na mesa, mesmo que não fosse sempre, é como se fosse sempre que me lembro: durante as férias, era sempre; na mesa havia sempre um puzzle. Dos enormes, dos de milhares de peças. Ninguém o fazia, exactamente. Ia-se fazendo. As pessoas, os tios, os primos, toda a família que ali estava nas férias, iam passando, iam entrando, iam saindo, iam conversando nas despedidas: e iam acrescentando uma peça aqui, uma peça ali.
Não se trata exactamente de pessoas reunidas em volta de um puzzle. É um puzzle que ali está, com uma existência quase independente e as pessoas vão passando. E (não sei porque raio tenho eu a mania de acrescentar sempre uma moral à história) faz-me mais sentido que uma família seja um todo assim: composto de peças soltas.