Hoje desfiz o meu puzzle.
Estava ainda no princípio: a parte da margem feita, as peças separadas por cores e ideias de formas, o espaço todo ocupado com tabuleiros e taças cheias de peças. Era um talvez-puzzle, que em certa altura quis (e pensei que lá iria) que fosse um de-certeza-puzzle; não estava destinado.
Não se trata de desistência assim sem mais nem menos. Parte pensada, parte por impulso. Incomodava-me, de certa forma, aquele belíssimo puzzle, ali parado. Poderia não ter ficado parado, mas o que é certo é que, a determinada altura, parou. Não sei se me deixou de encantar, se me cansei da angústia de ter que o acabar. Passou de por gosto a quase obrigação.
O que acontece é que uma pessoa tem uma trabalheira danada: anda dias naquilo, vai usando o tempo disponível todo, vai fazendo tudo com grande cuidado, uma grande organização. É evidente que é o método mais lógico, embora não ponha de parte que seja possível terminar um puzzle daquele tamanho recorrendo ao método de experimentar todas as peças uma vez em cada sítio. Imagine-se um canto, por exemplo; só faltam duas mil novecentas e noventa e nove peças, é experimentar cada uma delas até chegar à certa (com sorte pode não ser a última). Uma vez encaixada só faltam duas mil novecentas e noventa e oito peças e tenta-se outra vez passando todas as outras em revista. Eventualmente chegar-se-á ao fim, é possível. Pouco provável, mas possível e admito que haja quem os faça assim.
Eu não: faço primeiro a parte mais chata da organização das peças e isso come tempo e paciência. Se eu fosse o puzzle era bem capaz de me queixar, então, pá, nunca mais me fazes? Não vês que aquela peça que separaste agora está-se mesmo a ver que encaixa na parte à volta que foi a primeira coisa que fizeste? Porque é que guardas a peça nesse tabuleiro? E eu, tem calma, que já lá vamos.
(mas sim, faço primeiro o que está à volta e, por mais voltas que dê a todas as peças, por mais vezes que passem pelas minhas mãos, nunca encontro todas as peças direitinhas de um lado: há sempre uma ou outra que escapam e só aparecem mais lá para o meio)
O tempo passa e as peças nunca mais acabam. É evidente que gostaria de ter todo o tempo do mundo, que me desse para continuar quando estou mais entusiasmada, que pudesse parar quando estou cansada, mas a vida não são só puzzles; vai-se fazendo quando se pode, encontra-se tempo ou rouba-se algum a outras coisas e, às vezes, tem que se parar quando apetecia continuar ou continua-se mesmo sabendo que era melhor ir dormir, por exemplo. Não se tem suficiente disponibilidade para aquilo, talvez; mas insiste-se porque se gosta.
Tanta organização acaba por cansar. Um gajo já está naquilo só para não desistir. Ou não só por isso, no fundo sabe que, passando aquela parte mais complicada, depois dá imenso gozo e corre tudo lindamente e é só encaixar peças a partir de certa altura. E não desiste, caramba, não desiste mesmo, depois daquele esforço todo! Desistir? Quem eu? Nunca, vou até ao fim sempre, mesmo que esta porra não tenha fim, venha o que vier, nem que fossem dezoito mil peças! Embica naquilo e nada a fazer, a coisa bestial que aquilo era passa a inimigo a abater, seja lá como fôr, já não há gosto nenhum, só aquilo a enfernizar o juízo com o seu silencioso estou aqui à tua espera, encaixa-me lá qualquer coisinha, anda lá, larga isso que não interessa nada, vem mas é para a minha beira, constrói-me, porra, estou aqui para isso mesmo, não foste tu que me escolheste? Agora não te queixes!
Chega um dia em que, de repente, se olha para aquilo e se pensa, tudo ao ar, que se lixe! Não faço mais! Paciência para o esforço todo, azar se foi tempo perdido, que se foda o que se perde em não o acabar! Pode ser o mais maravilhoso puzzle do mundo, é bem capaz de ser, mas tem que se olhar para a coisa de frente e perceber: com este não me entendo. Não sei se vale a pena ou não, mas já não me interessa saber, que me anda a azucrinar de tal maneira que mais vale desfazer tudo de uma vez e pronto. Arruma-se na caixa, há-de servir para outra pessoa qualquer que tenha mais persistência ou tempo que eu. Ganhaste, puzzle. Cumpriste a tua missão de ser puzzle demais, complicado demais, não chego para tanta peça de côr indefinida. Desisto, está melhor assim? Há mais puzzles.
Há mais puzzles. A verdade é essa. Caixas e caixas em todos os lados, desde que uma pessoa se interesse pelo assunto: saltam caixas de prateleiras de lojas que até aí nos tinham passado despercebidas, saltam caixas de casas de amigos que nos dizem, epá tenho para aqui um monte deles, vem cá e escolhe, pessoas que nos dizem, olha tenho um bem giro, vais gostar de certeza, eu já o fiz todo, agora tenho-o aí algures arrumado, mas no fundo no fundo, o que os puzzles querem, a sua finalidade no mundo, por assim dizer, é serem feitos. E desfeitos no fim, claro, que não concordo nada e acho até um bocado estranho que, quando se acaba um, se colem as peças e fique para ali , pendurado ou encostado a uma parede, atirado para um canto até ao esquecimento total já-o-fiz-mas-mais-ninguém-o-faz, nada disso, um puzzle é para circular e dar prazer e felicidade ao próximo que o fizer.
Há mais puzzles, é uma certeza da vida. Claro que todos encaixam mais ou menos da mesma forma. Vistos do avesso, são todos iguais, as peças têm alguns formatos pré-estabelecidos, uma côr neutra no reverso, é até mais fácil encontrar os lados quando se viram ao contrário, não nos distraimos com os pedaços de traços e cores. E do lado certo também cada um terá montanhas de peças iguais: vejam-se os azuis de todos os céus de puzzle, repetidos até ao infinito: muitas dessas peças encaixariam noutros desenhos, provavelmente. Fazer um puzzle é mais ou menos parecido com fazer outro puzzle: mesmo método, mesmo formato, mesmo gozo ou angústia. O desenho final é que varia, claro, mas isso só se vê no fim, embora se saiba, à partida, qual irá ser.
Depois de o desfazer (a parte já construída) confesso: não tive coragem de misturar as peças todas na caixa. Se calhar deveria, mas aquele esforço todo…guardei tudo, todas as peças separadas, em sacos de sanduiches. Uma data deles. Que sirvam à próxima pessoa dessa forma, a menos que essa prefira começar tudo do princípio. Eu, se calhar preferiria, mas também admito que, se me fosse dado um puzzle já com a parte complicada resolvida, talvez não misturasse tudo outra vez. Um gajo aprende umas coisas na vida e uma delas é que as coisas complicadas e que dão luta são giras mas moem o nosso tempo e acabam por nos roer a nós. Outra é, claro, saber quando é tempo de desistir.
Comprei um novo da aldeia do Astérix. Creio que me assenta melhor.
Por enquanto está ainda dentro da caixa.
Um dia destes, quando me apetecer, rasgo o celofane.