100nada

sete anos

Daqui a umas horas (há sete anos) estou deitada numa sala a olhar para um aparelho que conta as batidas do meu coração. Lentas, cada vez mais lentas, o que é a coisa mais estranha do mundo se se pensar que acabei de conhecer o homem da minha vida, assim de repente e de relance, mas de óculos, de óculos que “esta senhora fica com os óculos por ordem do médico” (“por amor de Deus, não me deixe sem ver, sem o poder ver”) e esse momento é tão breve mas o mais importante da vida até ali e nunca mais me esqueço. Estou ali depois, deitada nessa sala a ver o meu coração a bater em formato digital, lentamente e nessa altura ainda não sei nada: penso que posso morrer feliz e descansada que está tudo bem. Só anos mais tarde se cristaliza a certeza que não é assim, que não se pode morrer feliz e descansada quando há no mundo alguém que nunca será amado daquela forma, não enquanto precisar de mim.

Há sete anos resolveu-se em mim eu mesma. O que era antes, nem sei, eu também, provavelmente, mas isto que me transformei, isto que sou, isto é o melhor de mim, o meu lado completo e feliz, às vezes, tão absolutamente feliz que quase se duvida que se mereça uma felicidade assim. Impossível colocar em palavras o que é ser mãe e eu que vou tentando há tantos anos, mas não sei onde começa ou onde acaba ou por onde passa. Registo os bocadinhos pequenos, aqueles que me iria esquecer e talvez um dia mais tarde perceba – ou percebo já, de forma ainda tosca e incipiente – que tudo aquilo é a imagem do que se sente, todos os bocadinhos, os bons e os menos bons e aqueles em que apetece ir comprar cigarros e voltar daqui a vinte anos e os outros, aqueles em que fugimos para soltar umas lágrimas que teimam em cair e que são tão complicadas de explicar “também se chora quando estamos felizes, filho”.

Há sete anos que, às vezes, nem sei de que terra sou. Às vezes (muitas, às vezes demais) passo-me e berro e tenho fúrias e depois vejo o espelho nas fúrias dele e envergonho-me. Às vezes rebento de orgulho, outras de tristeza, outras ainda de preocupação e sempre de angústia, essa que vive ao lado do amor. Às vezes duvido que consiga fazer dele um homem de bem no meio de um mundo tão cão. Outras reconheço-lhe uma força brutal a fazer frente a injustiças e penso que talvez, talvez não esteja totalmente no caminho errado. Às vezes vejo-o a crescer tão depressa e surpreendo-me e depois o espanto também, quando é ainda uma criança pequenina afinal. Trocam-nos as voltas todas, eles, baralham e tornam a dar e, não sei lá como é, trazem com eles todos os trunfos e o ás de espadas e nós só podemos manter-nos à tona dessa coisa enorme que é a maternidade sem ter pé.

Há sete anos, quando a máquina avisou que o meu coração estava normal e eu comecei a sentir a anestesia a ir embora e quando mo deram para o meu lado e eu fiquei a olhar para aquele milagre sem saber ainda nada do resto, apenas deslumbramento sem medo, transformei-me em mãe. Tenho tentado ser sempre mãe, pois para mim nada se divide e não se é menos mulher por se ser mãe, antes pelo contrário e não sinto que tenha perdido o que quer que seja mas sempre ganho, seja em desespero ou absoluta maravilha. Posso agora, ao fim de sete anos, fazer o balanço que se calhar nunca me atrevi, talvez por receio de parecer arrogante. Mas tenho a absoluta certeza que a minha opção de prioridade total é a certa. É possível que seja um daqueles caminhos menos simples, com mais pedras, algumas até das que não saem dos sapatos; mas é a minha opção e sinto-a certa. Para mim e para ele, esse homem da minha vida, ainda pequeno, que dorme à espera de acordar mais crescido, mais alto, maior, enfim, cheio de pressa de ser grande. E eu, mãe dele, babando (como é evidente) à espera que acorde para lhe dizer, num abraço imenso

parabéns, meu amor.




I'm here, now what?

e então uma pessoa começa a andar. Anda, anda, anda, anda. Tropeça, anda, anda, anda, dorme um bocado, anda mais, cai e esfola um joelho, continua a andar. Um gajo não pára, não interessa muito essa treta toda dos caminhos, quando eu era mai novinha, achava que sim, que havia caminhos e veredas e estradas largas e azinhagas escuras e realmente há, mas eu achava que tudo isso tinha algum significado. Que um gajo se calhar devia ir pelo caminho mais estreito e mais difícil e mais complicado, de preferência sem sequer tirar as pedras dos sapatos. Aquela onda um bocado sofrimento obrigatório/eu vítima das feridas, quando às vezes é uma porra de um calhau entre a sola e o pé e que convém mais é sacudir. É como os caminhos. Não há que os caminhos fáceis são maus e os difíceis é que são bons. Quer dizer, claro que há, com destino à sabedoria e a mais umas quantas coisas que agora não me lembro (e que me remetem logo para conversas sobre “espaço e energia” e “os três tipos de pessoas” que são afinal quatro, que adoro desmontar mas fica sempre lá qualquer coisa: concordemos então, para a sabedoria há que calçar botas de montanha, meias grossas de algodão e penar, ok! agora continuo o meu post, pode ser?) e outras que até me lembro mas não me apetece agora ir por esse caminho; mas esses caminhos difíceis não são pera doce, não é pra todos! Ah pois não! Mas achavam o quê? Um gajo escolhia um caminho árduo e depois era como se andasse em cima de um sobre-colchão de latex? Não, pois não? Pois então, regressando aos caminhos, quando não se sabe bem se se aguenta, pois o fácil também está muito bem. E porque não? Não se vai ter à sabedoria e depois? E o outro vai? Como é que sabemos? Por causa da pedra a furar a meia? Ora, tende juízo. Um pé a coxear não significa coisa nenhuma. Todos vão dar a qualquer lado e um gajo só sabe quando lá chega. O que é verdadeiramente importante é, pois, andar. Só andar às vezes não é nada fácil, mas um gajo vai andando e, um dia, chega e pensa que se calhar ainda vai ter que andar muito mais.





Raizes

A paisagem estende-se à minha frente e as ideias desaparecem. Em férias nada ocorre e os dias dividem-se apenas em horas todas elas vagas: horas de almoços e jantares em família, conversas entrecortadas pela barulheira e correria das crianças; jogos e brincadeiras sempre com a miudagem a reboque; momentos de ama-televisão-playstation-gameboy para tempo de adultos em maior sossego; jardinagens e passeios. Olhar para o verde das árvores, o azul do céu e não pensar em nada, só deixar o tempo correr.

Em férias, sempre no mesmo local, sempre as mesmas pessoas: família. Entre as recordações da nossa, a infância dos nossos filhos, a vida parecendo correr ao sabor de todos, na realidade sempre centrada nos mais novos. Há isto para preservar e “isto”, descobri eu, com algum espanto e já adulta, nem toda a gente tem. “Isto” nem sei bem eu definir. Uma aldeia, uma família de tetravós comuns, casas de férias, dezenas de primos. Gerações mais novas que constroem as suas casas de férias nas quintas dos avós, para regressar, regressar sempre, todas as férias, todos os fins de semana possíveis. Os primos todos que se conhecem antes sequer de se lembrarem, nas fotografias, olha aqui eu contigo, ainda bebés, que giro! E depois, nas primeiras recordações, lá estão esses primos, eternamente de férias, ano após ano, no Verão, na Páscoa, no Natal, nas passagens de ano, em todas as festas felizes; em todas as alturas mais dolorosas também, essa família que se abraça em casamentos e funerais, não apenas perfunctoriamente, mas por serem talvez nem todos os melhores, mas os mais antigos amigos, aqueles que estiveram sempre presentes e continuam a estar.

“Isto” não sei se é o sítio, se é a memória, se é a família. Tudo, provavelmente, uma mistura do passado e das histórias, do presente e das nossas coisas de todos os dias serenos, do futuro e das árvores que se continuam a plantar. No fundo, um dia, há muitos anos, alguém passou por esta terra e aqui ficou. Plantou esta família, uma arvore geneológica já muito antiga, cheia de ramos e sempre com folhas novas. É isto, esse “isto” que aqui se preserva. Um tempo de paz, um intervalo na confusão dos dias úteis. Estes, os mais úteis de todos, para onde trazemos os nossos filhos, que aprendem assim de onde vieram. Para que um dia eles queiram voltar.

(da minha cronica “Amo-te” na revista Psicologia Actual, escrita aqui, ha exactamente um ano)


O vento

Quente, agora. Depois das varias noites a lembrar Setembro (por estes lados, a partir do meio de Agosto lembra sempre Setembro e, muitas vezes, antes do meio de Agosto tambem), vento quente a lembrar Agosto. Um Agosto raro aqui, um vento invulgar. Estranho estar fora de casa depois de anoitecer, sem ser preciso um casaquinho. Nao me queixo, e’simpatico, mas fora de sitio. Fora de tempo.

Lembrei-me do vento porque sopra aqui e e’ impossivel nao ouvir e esquecer-me dele. Mas queria era escrever sobre pessoas felizes. Nao sei se serao, no resto do ano, nos dias dia-a-dia; mas creio que sim. As pessoas felizes trazem com elas um ar de continuidade. Nao estao felizes por ser tempo de ferias ou por qualquer outra razao. Sao felizes e continuam a ser. Nota-se. Sao pessoas normais (como toda a gente e’ normal) e sao (anormalmente) felizes. Sao tao anormalmente felizes (e algumas delas carregam na vida tantas tristezas e desgostos) e sao tantas, que se pensa que sera’ isso, talvez, a normalidade.
Seja la’ o que for, sabe mesmo bem.


sem sentido ou talvez nao

O soro fisiologico poisado dentro do cinzeiro e o copo de ice tea green quase vazio, sao detalhes que nos tiram do lado do que haveria de ter sido escrito aqui, mas nao e’ por isso; e’ por serem mais um sinal que ha uma linha (um risco de giz no chao, trac,ado pela minha mao) que nao se ultrapassa, um aviso de realidade. Convenhamos: estender a mao para um copo quase vazio ou um frasco de soro que jaz no meio da cinza, faz-nos regressar ao serio.

Hoje, nesta tarefa diaria de fim de tarde a que me entreguei e que me parte toda (baixar, cortar haste de agapanto, levantar, deitar haste de agapanto no carrinho de mao, baixar, cortar, levantar) mas que me deixa (deixa-me o que, exactamente? Cardos na roupa, picadas nos brac,os, o sol deitado e o vento por entre as arvores, a luz do final do dia, o som dos meus passos sobre o saibro dos caminhos, os caracois atirados para longe das folhas, o suor a escorrer debaixo do bone’ que me prende o cabelo, os arranhoes nas pernas, a brac,ada ainda roxa que atiro para cima do monte, os pingos de seiva que escorrem na pele) que me deixa isso tudo: mas para alem desse isso tudo, ha em mim outra coisa. Quase outra pessoa. A que escreveria agora o resto, mas que se atira com raiva ao proximo agapanto, para nao

(ha alturas em que um gajo como eu, um bocado abrutalhado, ja cansado, a arrancar a porra do agapanto, a partir a haste tao grossa que a tesoura nao consegue abarcar, nao se pode permitir) sonhar.