100nada

Enlatado

(TrAmo-te)

– Sobre as necessidades da alma e as questões de tempo –

Havia um menino que não tinha casa e vivia na ponta do passeio. Mesmo ali ao lado dos carros. Vivia na risca de pedra que ladeia a calçada portuguesa. Quando não tinha nada que fazer, contava as pedras. Quando se fartava contava os carros. Descobriu que os carros mudavam sempre, mas as pedras continuavam sempre ali.
Passou o tempo.
E depois descobriu que afinal os carros eram como as pedras. Eram também sempre os mesmos.
É tudo uma questão de tempo.

Havia um menino que vivia à beira de um rio. Todos os dias ia até à borda da água e ficava a pensar que seria muito bom mergulhar naquela cor e contar os peixes. Provavelmente, ao fim de um tempo, seriam sempre os mesmos.
Mas depois lembrava-se que a água poderia estar fria. E lembrava-se que depois não tinha toalha para se limpar. E lembrava-se que era a hora do lanche. E ficava sempre só no desejo, nunca na concretização.
É tudo uma questão de fome.

Havia uma casa com um telhado muito destelhado. Telhas descoladas, voadoras em dias de ventanias. Poucas voavam para outros buracos no telhado, pois é da natureza das telhas voadoras que voem para longe do local onde fazem falta (dessa natureza sofrem muitos outros substantivos e até alguns verbos).
Resultava este voo num destelhar cada vez maior.
Em dias de chuva, resultava o destelhar em diversos pequenos riachos que corriam para o interior da casa. Os riachos resultantes eram travados em baldes e bacias.
Em dias de sol, resultava o destelhar em diversos pequenos pássaros que voavam para o interior da casa.
Os pássaros resultantes travavam concursos de cantorias.
É tudo (uma vez mais) uma questão de tempo.

TrAmo-te, 24.10.03

0 thoughts on “Enlatado

  1. PreDatado

    Havia um menino que vivia numa árvore. Construiu uma cabana, lá em cima, num ramo, bem pequenina, à sua medida. Quando o outono chegava e as folhas das árvores caíam e a beleza dos ramos partia e o vento soprava gélido por entre as gretas das tábuas da minúscula casinha, o menino descia da árvore e voltava a subir com um vaso e uma flor. As lágrimas regavam o vaso e o menino esperava que flor crescesse e substituisse a cobertura da árvore.
    É tudo uma questão de fé.

  2. duende

    É tudo uma questão de vida. Na natureza tudo se adapta, toda a peça acaba por encaixar no sítio certo.

    Hoje acordei optimista. :)

  3. catarina

    Eu fico na minha, é uma questão de tempo (se está sol ou se está a chover…:)). Já vi que sim, Du, e está um dia bem bonito. Beijos.

  4. Mar

    Eu acho que é uma questão de vontade. De querer e de poder. De novo. ;-)))