100nada

A Lyon…nada

Ontem, um amigo meu escreveu um magnífico texto sobre Francisco Lyon de Castro. Autorizou-me que o copiasse para o 100nada. Uma vez mais, o meu muito obrigada. Pelas memórias.

‘A Lyon…nada

Noticiam os jornais on-line que compareceram mais de 100 pessoas (105? 110?) ao funeral de Francisco Lyon de Castro. E repentinamente recordei-me do que esse homem que não conheci fez por mim e pelo meu País.

A sua morte transportou-me à minha infância e àquelas férias grandes que eram mesmo férias a sério, quando passava uns chatérrimos 15 dias à borda do mar a espetar pregos na areia e quase três meses (quase inteirinhos!!!) na aldéia das minhas mais felizes recordações, a fazer tudo o que convinha a um garoto com imaginação q.b. e muita leitura nos olhos ávidos. Nesses dias inteiros e quentes, entre futeboladas intermináveis, descidas ao fundo de minas de exploração apressada de volfrâmio, de épicas batalhas entre índios e cobóis abruptamente terminadas quando descobri (literalmente) a pólvora, havia um dia especial em que a aldéia parecia adormecida, até a passarada voava num sussurro ou andava pé-ante-pé para não acordar as fisgas momentaneamente esquecidas: era o dia previsto para a passagem do furgão da Biblioteca Itinerante da Fundação Calouste Gulbenkian, repleta de livros e a transbordar de sonhos. Mal a carrinha assomava o Alto de Côche no seu vagar ronceiro de pneus fracos trilhando macadame roído, era um acordar de figurinhas de 9, 12, 13 anos, e também mais velhos, adultos pais de filhos, saindo dos umbrais combatentes da estiagem, ou das vinhas, ou dos milheirais, ou das leiras, e a aldéia buliçava até ao largo principal ao encontro do pedacinho de cultura que o salazarento regime permitia, a custo e a conta-gosto. Depois, era um manancial de trocas de idéias e de livros, de Os Cinco da E. Blyton aos piratas e tigres de E. Salgari, da futurosofia de J. Verne ao humor sereno de M. Twain, do cristianismo contundente de Stº Agostinho ao apaziguador Teillard de Chardin, do corrosivo ou lacrimejante Camilo ao bom-serás do J. Dinis, do intimista Simenon à genial plagiadora Agatha C., de Byron a Natália Correia, de Vitruvio a Courvoisier, de Rafael a Picasso, e etc., um nunca acabar de etecetera. &Etc.
Foi neste ambiente que descobri a obra de Francisco Lyon de Castro. Melhor dizendo, foi neste ambiente que descobri as colecções da editora Publicações Europa-América, fundada e dirigida por Francisco Lyon de Castro. Até houve um tempo em que a pacatez e o silêncio semi-religiosos que se respiravam no interior do pequeno furgão da Biblioteca Itinerante quase cheiravam a revolta mal-contida, tal a apetência de todos pelos livros da PEA, e por tudo, e por nada. Por tudo, pelo design apelativo das capas, pelo papel de qualidade, pela boa impressão, pela excelente encadernação que não deixava quebrar as lombadas nem fazer descolar e esvoaçar páginas ao primeiro sopro outonal, e também, e sobretudo, ou sobre isso tudo, a excelente escolha dos livros e autores; e por nada, porque todos os livros eram passados de mão em mão e todos lidos, e trocados, até chegarem finalmente à mão do fiel-depositário que os entregaria no final do mês que intervalava as passagens da Biblioteca Itinerante. Por nada, mesmo, mesmissimamente por nada, porque todos acabaríamos por ler os mesmissimos livros, mas já nesse tempo o português era assim, casava em segundas núpcias com raminhos de flores de laranjeira.
Com as PEA de Francisco Lyon de Castro aprendi, em menino, coisas do arco-da-velha. Não aprendi a engatar uma miúda, mas aprendi a construir um foguetão – pequenino, caíu a 300 metros – e a sonhar com Marte, Júpiter, a ida à Lua, o nebuloso das Estrelas; aprendi exóticos vulcanismos, espiei etnologia, percebi que nunca seria sociólogo, apaixonei-me pela antropologia, detestei os latinistas, decidi-me pela arqueologia que um Marcelo me vetou, aprendi rudimentos de ética, estética, até da desmoralizadora eto-estética da tatuagem moderna; sondei as profundezas dos Oceanos, vivi com os gorilas, acompanhei os exploradores dos Pólos Ártico e Antárctico, quase dei à luz uma relativamente nova teoria do relativismo; descobri poetas e prosadores, e efabuladores dos tempos passados e presentes, e dos futuros que hão-de vir; e etc.

Um “e etc” que é curta manta para um dos maiores de Portugal no Século XX, e que não sei honrar de outro modo que a memória que fica em mim, enquanto existir. Coisa pouca, eu e a minha memória, tão breves, tão sem comparação com o trabalho hercúleo de um Homem que se sacrificou por levar o conhecimento da Humanidade a um País inculto e descrente. E burro. ‘

Xerxes

(pt.conversa, 13.04.04)

0 thoughts on “A Lyon…nada

  1. Adufe.pt

    “Para os filhos dos homens que nunca foram meninos”

    “Para os filhos dos homens que nunca foram meninos” . Começa assim o primeiro livro das Publicações Europa América de que tenho memória. Livro de bolso, 10ª edição, notam-se bem os mais de dez anos passados desde que o…

  2. Leonel Vicente

    Tenho de repetir os anteriores. Muito bom!
    Tantas “descobertas” que se nos tornaram “acessíveis” com a Europa-América…

  3. Titas

    Um Senhor, com S grande, de gentleman, de cordial, de grande profissional, que tive o prazer de conhecer por ser avô de um amigo meu.

    Com grandes ideias, com uma mente aberta se constrói um império, que felizmente fica para todos nós, essa parte da herança também é nossa!