100nada

A luz de uma sombra

Um dia apareceu um homem que tinha uma sombra. Toda a gente faz sombra mas este tinha uma. Era dele, a única coisa que tinha seu para além do corpo. Tudo o resto que tinha, ele sabia, não era bem dele, era assim, estava na mão dele agora, podia não estar depois. Até o corpo, ia considerando ele, até o corpo não era bem dele. Estava ali agora, podia não estar depois, não na mesma, podia mudar, cair-lhe um bocado, quem sabe. Ia mudando, a verdade era essa. Aqui caía um cabelo, ali nascia um sinal. A sombra, essa, era sempre igual. Alongava, diminuia, mas não desaparecia.

Um dia o homem olhou, pela trigésima sétima vez, talvez, para a sua sombra, para ter a certeza que estava ali, sempre com ele, colada aos pés, que não tinha ido embora numa esquina ali mais atrás, atrás de outro par de pés, quem sabe, uns pés que não pisassem tanto a sua sombra, este homem tinha consciência que talvez a tratasse mal, na verdade uma sombra é sempre pisada, é da natureza das sombras estarem na ponta dos pés, mas podia levar-lhe a mal. O homem pisava leve, para não a magoar muito, de qualquer modo, nunca fiando, apesar de ter a certeza, quase quase absoluta, que a sua sombra não o iria abandonar. Mas era a única coisa que tinha. Era natural que causasse alguma preocupação. Sendo a única coisa que tinha era mesmo a causa de toda a preocupação. Era a preocupação. Era a causa dele. Se a sombra era a sua coisa, a preocupação era a sua causa.

E nesse dia, pela trigésima sétima vez, quando o homem olhou para a sua sombra sentiu-se desfazer. Percebeu nesse preciso momento que o corpo não lhe pertencia, mas isso foi o pensamento lá atrás, a voz seca que dá indicações precisas: atenção pulsação alta. Atenção tonturas. Atenção acabaram de estoirar quatrocentos e setenta e três neurónios. Estamos a avaliar sinapses. Porque a realidade, aquela que dói de repente, aquela que ataca o estômago aos murros, a cabeça aos pontapés e o coração com uma prensa, essa é que aconteceu ao homem.

A sombra, a sua, única, sua, absolutamente quase quase sua, sombra, tinha desaparecido.

E ficou imóvel, parado no fim do mundo. Sem sombra nada sou, chorou. Mas depois num acesso de raiva que o salvou, gritou

A puta! Que me abandonou!

E caiu para a frente desamparado. Nas pontas das mãos, lá no fim dos dedos, surgia muito devagar a sua sombra, com um ar (o homem iria jurar!) culpado. Não se acreditem em milagres, pois não existem, nenhum senão este de uma sombra reaparecer na vida de um não se pode dizer homem porque era já nada. O homem não acreditou nem naquele. Mexeu-se e a sombra imitou-o. Levantou-se e a sombra ali estava, de novo colada aos pés, como se nada tivesse acontecido (puta!) e ele foi olhando para a sombra alongada e transformou-se do nada. Outra vez homem com sombra, olhou para cima (olha-se para cima nos milagres, é suposto) e viu uma luz. Quase quase por cima dele. Podia ser divina. Mas não era. Era um candeeiro de rua na verdade. Mas foi como se fosse divina porque o homem teve um momento de entendimento do mundo, a resposta para a pergunta da vida. Deu um passo para o lado para ficar mesmo debaixo do candeeiro…

a sombra desapareceu.

Era uma vez um homem que nunca mais na sua vida caminhou sob a luz.

0 thoughts on “A luz de uma sombra

  1. duende

    “Criatura de um só dia! Tal é o homem: sombra de um sonho.
    E, contudo, quando o esplendor divino baixa sobre ele,
    Uma luz radiosa o ilumina, e maravilhosa é a vida!”

    Píndaro

    Ele lá sabia. Eu cá estou mais para o cinzento hoje, pelo que só me ocorre dizer que a sombra como a luz, cega na mesma medida. E que gostei muito, claro. :)

  2. Mar

    Olha lá!…
    Mas tu queres entupir-me o sistema seleccionador, de coisas que são inseleccionáveis (será que isto se diz??), por serem todas tão boas que não sei qual escolher? Hein??
    Isto faz-se? ;-))