Solidariedade ou respeito pela privacidade?
No parque de estacionamento, fiquei no carro porque o bebé tinha adormecido no banco de trás. No lugar à frente, saiu um carro com um casal dentro. Ela era mais alta que ele e ia ao volante. Não conseguiu tirar o carro à primeira, faltava-lhe a direcção assistida. Quando conseguiu, estacionou logo outro carro. Outro casal. Quando sairam do carro pensei, hoje é o dia das mulheres altas. Loira, alta, também mais alta que ele. Calças de ganga apertadas, sapatos muito altos num domingo. Um abraço clássico, esta loira é minha, mão dele na anca dela.
Demoraram muito pouco tempo. Nem tempo para um café, talvez só para cigarros, talvez o supermercado fechado. Foram embora, ela com o mesmo ar enjoado, ele com o mesmo ar triunfante. Estacionou outro carro. Outra loira, mas esta era uma senhora. E a primeira coisa que reparei foi que tinha os cantos da boca para baixo. Depois vi que era muito bonita (ou, como se costuma dizer, tinha sido muito bonita em nova). Ficou dentro do carro, mesmo à minha frente, sem se mexer. Não me viu, ali a dois metros de distância. Comecei a ficar com vontade de ajeitar o bebé no banco de trás.
Quando me virei, continuava quieta, com a mão na cana do nariz e os olhos fechados. Depois começou a massajar a testa. Tudo isto sem me ver. E eu, a sentir-me a assistir a uma cena privada, voltei-me outra vez para trás. Quando olhei outra vez, já estava a chorar. A olhar para a frente, mas não era para mim, para uma frente qualquer que só ela via, as lágrimas a correrem pela cara abaixo. Há qualquer coisa de dramático numa mulher de sessenta anos que estaciona o carro num parque de estacionamento de um centro comercial para chorar. Num domingo ao fim da tarde. Voltei-me para o meu filho, firmemente decidida a não olhar mais para a frente. Até ouvir uma buzina. A cabeça dela tinha caído em cima do volante.
Depois levantou-se, limpou as lágrimas e ligou o carro. Foi-se embora. Creio que, nos minutos que ali esteve, nunca sequer deu por mim, uma testemunha de uma história que não posso adivinhar, uma pessoa que não devia ter assistido a uma cena completamente privada num local totalmente público.
Não sei se deveria ter saído do carro e ter oferecido um lenço.
A idade e’ lixada, mas pode ser particularmente cruel nas mulheres apaixonadas.
Recordei-me de algo que a minha irmã viu uma vez: um homem que meteu um balázio na cabeça em plena via pública. Assim, simplesmente… Parou o carro e fê-lo.
Privacidade é uma coisa que a gente inventa… solidariedade é se sensibilizar com a dor alheia. oferecer o silêncio, por que não?
Há tanta gente a chorar (nem que seja para dentro) em lugares públicos, sem que ninguém lhes dê um lenço, um ombro ou um sorriso de compreensão. Se calhar o problema não é tão privado como isso. A solidão é, cada vez mais, infelizmente, um problema de uma sociedade inteira.
O que fazer…
É maus uma prova que é possível estar sozinho no meio de uma multidão. Procuramos o refúgio e a privacidade, num local onde esperamos pelo menos passar despercebidos e anónimos.