100nada

Antes que me esqueça

O que é mesmo estranho, penso eu, é que as sombras são as sombras do meio dia, pedaços de jardim muito iluminados pelo sol e os outros muito sombrios por oposição, porque o sol cega. E se é meio dia não vai já escurecer, mas é isso que acontece.

O jardim é cá em baixo, muito verde e cerrado, cheio de árvores e arbustos e trepadeiras que sobem pelo muro até lá acima, à estrada que passa por cima do riacho. Cá em baixo, no jardim, há um caminho e uma ponte antiga, de pedra. Depois o caminho sobe, uma ladeira muito larga, o fim do jardim, e encontra-se com a estrada lá mais à frente. A estrada faz uma curva e tem uma parede muito alta à frente. E é nessa parede que estão escritas as frases.

Em cima da ponte está (esteve?) o camião avariado. Está (esteve?) vazio, não tem ninguém. Aliás, não está ali mais ninguém senão eu, naquele jardim e estrada desertos, à luz de um meio dia a fazer-se quase noite. E as frases da parede (quais são? Quais são que me perseguem e não me lembro, não me lembro! Vejo-as e não as consigo ler agora) são relacionadas com o camião, ou com a avaria. Ou com o motorista (passageiro?) do camião, ou alguém que tem alguma coisa a ver com tudo aquilo, mas que não está (não devia estar) ali. Um atropelado? O camião em silêncio, vazio, o jardim parado, as sombras aumentam, as frases que não consigo ler agora, que sei o que eram mas não me lembro, não as deveria ter lido, sei agora, não deveria estar ali, preciso de ir embora já, mas há qualquer coisa que me impede, que não me deixa andar. Um lamento ao longe, palavras numa voz muito fina, uma voz chorosa, que tenta enganar-me com esse lamento, uma pedido de socorro disfarçado, uma ameaça na sombra, é (eu sei) um homem vestido de farrapos (a roupa que se desfez no embate?), uma criatura que me irá perseguir porque eu sei, eu li, embora não me lembre. É só uma questão de tempo até me apanhar (eu sei), não tenho saída. Escuso de fugir, não há saída e a voz aproxima-se nas sombras. Ficou noite de repente.

Acordo às quatro da manhã. Assim. E para não me esquecer, desenho esse jardim.

0 thoughts on “Antes que me esqueça

  1. aNa

    ui! ui! ui! :)
    um dos últimos sonhos que mais me marcou, foi passado entre parques de estacionamento subterrâneos e lixeiras!!! e depois descodificar aquilo tudo foi uma trabalheira 😉
    um grande beijo de boa tarde!!!