100nada

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O pato metálico

Janela aberta. Há um ruído que me está a moer o juízo sem eu dar por nada. Está lá, os meus ouvidos ouvem, o meu cérebro regista e eu começo a ficar impaciente sem saber porquê. Irrito-me. Não sei a razão. Sei que deve haver uma razão, há uma razão, mas não consigo descobrir qual é. Fico imóvel a tentar perceber. Até que oiço mesmo.
Lá muito longe há qualquer coisa. É tão longe que não se detecta de onde vem. Está tão longe que parece muito perto, um barulho muito baixo muito perto de mim. Mas é um barulho alto, que perde a força com a distância. É seco, ritmado, agudo de metal. Parece um pato. Um pato metálico, a grasnar num lago (de óleo?) lá longe. Não é um pato metálico, não há patos metálicos. Mas parece.
O pato metálico não se cala. E eu vejo uma imagem que está do outro lado do monte, onde a vista não chega. Lá longe está um homem a bater com uma chave inglesa num cano. Não está a fazer nenhuma obra útil. Está a bater num cano porque não tem mais nada que fazer. Penso que seja uma caleira, um pouco rota, entupida de folhas. Um cano de metal, com a tinta verde pintada de ferrugem. A ferrugem vai saltando com as pancadas da chave inglesa guardada debaixo do banco de um automóvel iluminado com neons por baixo. Está uma rapariga a rir sentada no carro, um riso histérico, nervoso, uma voz que diz pára lá com isso. Ele não pára.

O homem bate num cano, um pato metálico grasna ao longe. E eu escrevo a história.