O fio do meu tempo
Há duas semanas. Não. Antes. Quase um mês. Antes do dia em que (não publiquei) escrevi isto
(..minha senhora, vou pôr assim as coisas: no seu estado, corre perigo de vida)
o fio do meu tempo era outro.
Era uma fita larga, cheia de cores, umas mais tristes, outras muito alegres, uma fita quase solta do meu tempo, como se uma e outro não se tocassem, como se o tempo corresse a um passo e a fita do meu tempo desse voltas e laços e nós sem que o tempo passasse pela fita.
Nesse dia e nos seguintes a fita surgiu-me, em sonhos, pesadelos, em momentos de alucinada clarividência, cortada ali mais para a frente, já muito curta, cada vez mais curta. E agarrou-se ao tempo, talvez porque o tempo, de repente, tivesse passado a contar. A passar pela minha fita do tempo, a riscar a minha fita do tempo, a dividir a minha fita do tempo em intervalos cada vez mais pequenos.
A fita do meu tempo e o tempo tornaram-se num só.
Até ao momento, segundos antes de adormecer, em que a fita acabou.
Quando acordei e nestes dias que se seguiram, vejo que tenho um fio no lugar da minha fita colorida. É um fio muito resistente, um fio de quem sobraçou num desespero irracional e acordou abraçada à vida.
E o fio do meu tempo e o meu tempo abraçaram-se também.
—-
“Mas quando, depois de assitir à partida de toda aquela gente, entrei no quarto e me deixei cair sobre a cama, eu sabia que estava tudo terminado. O meu coração descongelara. Em poucas semanas, talvez dias, quem sabe se horas, a idade faria valer os seus direitos. Durante vinte anos mantivera uma aparência fresca e jovem anormais. Mas agora sofreria o horror de ver em pouco tempo a minha pele enrugar-se, as veias sobressairem das mãos, enodarem-se, as olheiras cavarem-se fundas e negras em torno dos olhos, cujo brilho se desvaneceria rapidamente, o cabelo tornar-se primeiro grisalho, depois branco e sem vida, cairem-me os dentes, fugir-me a alegria. “
Américo Guerreiro de Sousa, ‘Os Cornos de Cronos’
- Bom dia!
- Essa choradeira aí de baixo
Muito bonito o que escreveste!
Sabes do que me lembrei? De uma coisa que adorava fazer em miúda com fitinhas coloridas. Entrelaçadas davam harmónios que pendurava em tudo o que era lado. Eu sei que não tem nada a ver, mas tu tens o dom de me lembrar de coisas bonitas e de dias que gostava de colorir enquanto alguém se debatia com a fita curta que lhe restava. Talvez por isso eu fizesse tantos harmónios na tentativa de a aumentar.
Beijo
um beijo às duas
Sei do que fala a Maré. Também eu as fazia com as fitinhas do Carnaval. Mas eu não sou tão colorida como ela por isso o que o teu texto me fez lembrar foi: esta gaja engana as parcas na boa. Roubou-lhes a tesoura com uma limpeza invejável. 😉
Beijos às três. Se o meu fio recomeçar a parecer-se com um harmónio de serpentinas (sei bem do que falam, fazia o mesmo: havia aqueles simples só com duas fitas e depois, uns mais complicados, à volta…:))), as cores dessas fitas são as vossas.
Obrigada, obrigada, há tantos anos que eu andava a tentar lembrar-me do nome desse livro e do autor, um livro que li e nunca mais esqueci e farto-me de falar nele e não conseguia lembrar-me do nome e ninguém me sabia dizer e agora tenho de ir que vou já à procura de um sítio qualquer para o comprar!!
Elsa, desejo-te a maior das sortes para essa busca. Há 3 anos que ando à procura desse livro para o oferecer (creio que o encontrei por pura sorte) e está completamente esgotado. Se o encontrares e lá estiverem mais, avisa-me por favor. É um dos livros mais espantosos que li, excepcional, uma pena que seja tão pouco conhecido e nunca mais o tenham voltado a editar.
Catarina, encomendei no site online da Bertrand, pelo menos deixaram fazer a encomenda – provavelmente vão avisar-me depois da indisponibilidade, mas pode ser que tenha sorte
Se conseguir eu aviso.
Agradeço imenso, Elsa.