'E ela dança'
‘Às vezes, quando a casa estava adormecida à noite, ela dançava pela sala fora, tal como escreveu (“bailarina fui mas nunca bailei”). Às vezes, convencia-se que havia ladrões em casa e acordava-me do sono para espreitar debaixo da minha cama, e às vezes havia ladrões a sério, com cara de assassinos e crachá de PIDE, que chegavam pela alvorada do dia, mas verdadeiramente ela não tinha medo dos ladrões nem dos esbirros do “velho abutre”: só tinha medo de fantasmas.
(…)
A mim, todavia, ensinou-me o mais importante de tudo: ensinou-me a olhar. Ensinou-me a olhar para as coisas e para as pessoas, ensinou-me a olhar para o tempo, para a noite, para as manhãs. Ensinou-me a abrir os olhos no mar, debaixo de água, para perceber a consistência das rochas, das algas, da areia, de cada gota de água. Ensinou-me a olhar longamente, eternamente, cada pedra da Piazza Navone, em Roma, sentados num café, escutando o silêncio da passagem do tempo. Fez-me mergulhador e viajante, ensinou-me que só o olhar não mente e que todo o real é verdadeiro. Quem ler com atenção, verá que esta é a moral que atravessa toda a sua escrita.
A outra lição decisiva foi a da liberdade. Não só a liberdade física, não só a liberdade na luta pela justiça, “num sítio tão imperfeito como o mundo”, mas ainda a liberdade na busca de um caminho próprio onde as coisas tenham uma ética e façam sentido e, acima de tudo, a liberdade da nossa própria solidão. Prémios, condecorações, homenagens, são-lhe de tal forma alheios que ninguém mais o entende. Dêem-lhe, sim, silêncio e tempo, manhãs como a “manhã da praça de Lagos” e noites com “jardins invadidos de luar”. E ela dançará. Ao longo das sílabas dos poemas, como dançava na minha infância.‘
Miguel Sousa Tavares, não te deixarei morrer, David Crockett
- Sophia
- Ali o placard do lado
Eu escolhi uma foto esbatida, com o nome dela…
E só me lembro do meu poema favorito.
Dela, como não podia deixar de ser:
Apesar das ruinas e da morte
Em que sempre terminou cada ilusão
A força dos meus sonhos étão forte
Que de tudo renasce a exaltação
E nunca
As minhas mãos ficam vazias
Eu vi, Mar. Beijo, amiga.
Só consigo responder-te em lágrimas.
” E ela dança…”
Sempre, Maré, sempre.
E o filho herdou muita da capacidade de escrever da mãe… Este texto (e todo o livro) é lindo…
Obrigado Catarina.
És muito bonita, sabias? Enão, não estou a falar da Lili. 😉