Vinha aqui dizer que andava sem grande tempo e lembrei-me que andava a tomar omegas (3+6+9+uma data de números e letras). Até quis ilustrar o post com uma pic e encontrei uma linda, de cápsulas douradas gigantes, como as minhas. Mas toda a gente que partilhou a foto (era em CC), comentava a dizer que tinha usado para ilustrar omegas nisto e naquilo de saúde séria. Tive vergonha de colocar a foto sem deixar comento ou comentar ah e tal por acaso eu ando a tomar omegas e não tenho tempo para bloggar e nenhuma das coisas é relacionada, calhou lembrar-me.
Fica sem pic.
Não é um post de carnaval
Por um dia, mascarávamo-nos de desconhecidos. Nunca nos tínhamos visto e colocávamos máscaras de outras pessoas quaisquer, daquelas que vemos na rua, já de costas e nunca sabemos quem são. Éramos essas pessoas e ninguém daria por nós. E íamos também por essas ruas onde nunca nos cruzamos com outras pessoas invisíveis, cada um por seu lado, transparentes, mascarados dessa outra gente. Era provável, mais do que provável que, quando nos cruzássemos nunca nos víssemos, mas vamos imaginar que, por qualquer alteração momentânea da luz ou das sombras, de repente, estava ali aquele desconhecido à frente. Um que conseguíamos ver realmente. Seria um facto tão absolutamente inaudito, conseguir vermo-nos um ao outro na rua, que nos passaria pela cabeça, aos dois, já que éramos completamente desconhecidos e até estávamos mascarados, que tudo era permitido. Era possível não existirem impossíveis ou limites ou barreiras ou, muito simplesmente, era possível acontecer tudo aquilo que secretamente desejaríamos. Porque éramos totalmente desconhecidos a cruzarem-se numa improbabilidade estatística.
O problema é a conjugação num futuro condicional. Porque a condição era sermos desconhecidos e a realidade é que não nos conhecemos.
No semáforo vermelho
(Av. António Serpa, Lisboa)
Estão uns bombeiros a pedir. De fato vermelho, Associação Nacional de Bombeiros ou coisa assim. O semáforo está quase a mudar e não tenho tempo de abrir a carteira e procurar trocos. E sigo, a roer um peditório de bombeiros. Não é que seja coisa nova, já vi antes mas, por qualquer razão, ali, agora, dá-me cabo dos nervos. Não está certo. Não está nada nada certo. O país está em crise, não há verbas, nunca houve, daí os peditórios, nunca chega, mas foda-se! São bombeiros, caralho! Bombeiros! São os tipos que apagam os fogos. São os homens que dão o corpo ao manifesto quando as matas não são limpas, mais uma vez naquele ano, quando os planos directores ou seja lá o que passe por isso, se esquecem que é preciso ruas e estradas para se chegar aos incêndios, quando toda a gente acende e apaga cigarros no chão, faz piqueniques com fogareiros e queimadas quando ninguém está a ver, quando este país de merda se incendeia assim que começa uma nesga de calor. São esses homens que para lá vão, salvar o que podem, o que resta. Contra o fogo, pá. Não é contra um papel burocrático, não é contra uma chatice, não é com conversa e artigos e posts e retórica, é com mangueiras e carros e tudo aquilo já velho e obsoleto e a cair aos bocados. Estes tipos são heróis todos os dias e, bolas, estão nos semáforos a pedir, como se fossem aleijadinhos da tanga a falar línguas esquisitas. Não é justo, está profundamente errado. Os bombeiros não deviam ter que andar a pedir na rua. Tinham mais era que ter tudo a que devem ter direito, sem sequer dizer duas vezes.
Eu quero parte dos meus impostos para os bombeiros, já. Peguem fogo a meia dúzia de institutos inúteis. Ou três dezenas e o orçamento que sirva a quem merece. Porcaria de país sem vergonha na cara.
[quando era miúda, uns 15 anos ou isso, pediram voluntários no meu liceu, para ajudar os bombeiros no verão; fui logo dizer que sim. Não se riram de mim, os professores, responderam-me que, com o meu tamanho e peso, nem para ajudar a agarrar a mangueira teria força. Não se riram porque fui a única aluna num liceu de centenas de miúdos que se deu como voluntário. E sou socorrista, de treta, mas sou, com cartão da Escola Nacional de Bombeiros; uma pessoa faz o que consegue]
a fazer um filme
Se isto agora fosse um filme e eu uma máquina de filmar (nem se deve chamar assim) havia uma mesa muito comprida cheia de tralha em cima, coisas avulsas, pratos e copos e gaiolas com pássaros verdes e canetas de feltro e máquinas de escrever e frascos de especiarias e talheres, caixas de ferramentas, carregadores de telemóvel e ferros de soldar, garrafas de vinho e candeeiros de vidrinhos às cores, apareciam duas mãos a puxar com muito cuidado as pontas da toalha por baixo de toda a tralha
mas, em vez de, num passe de mágica, a toalha sair e ficar tudo de pé, no mesmo sítio
partia-se tudo e ficava uma mesa absolutamente limpa.
No semáforo vermelho
(Campo Pequeno)
Passa um avô com uma neta pela mão. Ele encasacado, de barba branca, ela de puxinhos loiros e de saia aos quadrados. Atravessam com cuidado e, enquanto esperam por outro semáforo, o avô encosta a outra mão à testa da neta, como que a ver se tem frio, não febre, mas frio, devias ter um carapuço, está um vento gelado, mas não larga a outra mão. Leva-a pela mão, os carros arrancam e param na esquina seguinte, prioridade aos peões, passam à minha frente, apressados agora. O avô aponta umas obras, esta grade não devia estar na ponta da passadeira, tem que se dar a volta e já os carros arrancam e os dois ainda no asfalto. E nunca larga a mão da criança. Porque nunca largamos a mão das crianças, são pequenas ainda, mesmo que já sejam altas. Agarramos a mão para as ter perto, para as proteger, porque não queremos que lhes aconteça um azar. Porque ainda são pequenas e precisam de ser protegidas, é isso.
Damos a mão e esperamos que as grades nas passadeiras sejam curtas e os carros arranquem com cuidado.
Sabes
O mundo pula e avança, já dizia o poeta, e é mesmo assim. Pula e avança, como um gato num telhado a ser passeado por um vulto que não se percebe se é homem se mulher. Viram os dias e chegam aqueles em que já não é noite a essa hora e o vulto se transforma numa mulher – é mulher afinal, um inverno inteiro sem se perceber. Os cães continuam a ser passeados à mesma hora mais tardia, os mesmos cães, a mesma hora, mas em dias que acabam mais tarde: não é tão noite, por assim dizer, relativa ao dia que terminou, embora cães e gatos mantenham os mesmos horários. É nessas rotinas que parecem iguais, é nas trepadeiras que parecem não ter crescido mas caem agora dos pauzinhos onde estavam presas, é nessa indiferença absoluta do mundo, que teima em pular e avançar ao tempo de uma planta a crescer, essa que observamos e se mantem imóvel e, quando nos voltamos, já foge do vaso pelas paredes acima, é essa indiferença dinâmica que o mundo teima em manter, em não nos ligar nenhuma (a nós e às nossas angústias e ritmos e dias assim e outro menos assim) e, ao mesmo tempo, em andar para a frente e nos empurrar, quer queiramos quer não, é essa força brutal que nos obriga, passe o lugar comum, a – tão simples quanto isto – viver.
(publicado em 29.05.2006 no Sociedade Anónima)
Search for the hero inside yourself
Just keep the flame of truth burning bright, M People
Street buskers
Viemos fumar um cigarro do lado de fora da porta da entrada de um centro comercial. Imensa gente, como sempre.
Ao lado, num espaço mais aberto, dois miúdos em piruetas. Pinos, rodas, saltos mortais, passos de dança de rua. Um deles impecável mesmo. E eu a dizer, se fosse em Londres, estes dois putos espetavam um tijolo com música e um boné no chão e, no fim do dia, tinham feito uns valentes trocos. Cá, assim que ligassem o som, iam logo de cana e, com o ar vagamente marginal que tinham, ainda teriam umas chatices.
É a diferença.
Don’t feed your (inner) troll
Toda a gente que anda na net há duas horas conhece o 1º mandamento “don’t feed the troll“. É uma tentação, claro, um gajo leva com uma provocação e quer é sangue, ou pior ainda, um gajo cai na tentação de ser troll e anda ali a chagar os outros até à medula e a rir-se que nem o sacana filho da mãe que está a ser. Sei bem, conheço os dois lados, já entrei em flames das grandes, a saber que devia ficar quieta mas sem conseguir ir lá berrar mais uma frase e já fui uma troll do caraças, mercê de ter aprendido com os melhores.
Com o tempo e principalmente o calo, aprende-se a não feedar o troll, já não há saco a menos que seja realmente um dia em que se precisa de um anti-stress sob a forma de sangue virtual. E também (no meu caso, pelo menos) se deixa de ser troll, porque também já não há paciência e antigamente é que era bom.
Muito mais difícil de controlar, e esse devia ser o 1º mandamento da net, é o “don’t feed your (inner) troll”. O inner troll é um bicho muito mais difícil de domar. É o bicho que se tem dentro e nos causa uma curiosidade e paixão mórbida por tudo aquilo que nos incomoda. Os nossos ódios de estimação, a quem somos mais fiéis do que aos que realmente estimamos. A diferença entre o troll e o inner troll, é que o primeiro aparece e viramos costas se nos apetecer, enquanto o segundo, não só não viramos costas, como vamos doentiamente à procura em todo o lado.
O inner troll é o bicho que nos obriga a ir googlar os nossos textos e ver quem os plagiou e depois ficarmos lixadíssimos, armarmos uma peixeirada enorme e roermo-nos todos. É o bicho que nos impele a ir todos os dias ler e reler um qualquer blog que nos odeia de morte e nos insulta de todas as formas e feitios. É o cabrão do bicho que nos manda dissecar todas as palavrinhas das pessoas que detestamos mortalmente.
Esse é o verdadeiro troll que precisa de açaime e trela com estrangulador. Porque um gajo, enquanto o alimenta, só se fode todo.
Recomeços
Abaixo segue aquele que é talvez o meu texto favorito. Usei-o mais do que uma vez para fechar este blog. Desta vez uso-o para, de alguma forma, o reabrir.
mas que raio é que estou eu aqui a fazer?
Por aqui, leia-se Nova Zelândia, claro. Já cheguei.
Tá imenso calor e há imensos cangurus e também uns ursos brancos polares sentados em cima de uns glaciares. Os cangurus vêm comer à mão, vendem-se uns saquinhos de pipocas especiais para cangurus, com molho de atum e natas. Os ursos têm uns chapéus, são panamás, e na fita está escrito dont feed the bear, mate, oh-i!. Há umas barraquinhas giras onde se vendem bebidas geladas com palhinhas, creio que têm vodka dentro, mas não tenho a certeza. O homem que me atendeu era albanês e não falava inglês, mas tinha tatuada no braço a seguinte frase: ou me pagas ou levas nos cornos. Em português, donde concluí que é bem capaz de ter percebido quando lhe perguntei ó meu cabrão onde é que se pode mijar aqui? (era a frase que vinha no livro O Tuga em Férias, cortesia do suplemento de um jornal que li no avião, pensei que seria uma boa primeira abordagem às nuances da cultura maori, se o português faz parte do plano de estudos e essas coisas), porque iria jurar que me respondeu minha ganda cabra vai mijar para a puta que te pariu, mas foi entredentes e nessa altura, quando vi brilhar aquela boca dourada (ai Corto, a faltinha que me fazes, desde que partiste no teu veleiro branco pelo mar pintaste a minha vida de transparente…) percebi que era albanês. Estendeu-me um copo de plástico transparente e apontou para um placard pendurado na barraquinha, ao lado dos crocodilos de borracha e eu paguei o dólar que me pedia. A palhinha era azul escura (como o mar que nos separa, ai Corto, a faltinha que me fazes…) e a bebida transparente (como a vida), donde seria vodka, pois de gin não se tratava por não cheirar a perfume barato de galdérias suburbanas. Afastei-me, porque estavam a chegar dois dos ursos e, pelo ar sedento e transpirado, creio que a barraquinha terá fechado cedo.
Dei umas voltas pelas outras barraquinhas, mas tirando os dentes dos atendedores, era tudo mais ou menos o mesmo e aproveitei para comprar uns recuerdos. Mas não me recordo do que eram e perdi o saco quando virei a esquina e tropecei no coral reef. Não sabia que começava logo ali, à saída da rua das barraquinhas depois do aeroporto. Mas quando me voltei, a esquina tinha desaparecido e, no lugar dela, estava um hangar com uma porta aberta. Lá dentro, pilhas e pilhas de folhas brancas (ai Corto, tão pálidas como as velas do teu veleiro, esse que vi partir, embrulhada no xaile roxo das viúvas das marés…), perguntei a um canguru para que serviam, mas ele não me disse nada, ninguém me liga nenhuma desde que fiquei transparente…mas depois percebi quando vi os tucanos a dobrarem as folhas com os bicos. Em duas, depois em quatro, depois um chapéu e depois é só puxar as pontas…
Havia barquinhos com um toldo de um lado, ou com dois, um de cada lado. Escolhi um só com um toldo, pois não quero apanhar sol na cabeça. Visto que sou transparente no resto não faz mal. Agora vou navegar até ao fim do coral, depois lá diante mando outro postal.
(17.05.04)