Corria o ano de 1976 e, o ainda fresco 25 de Abril e demais datas que se lhe tinham seguido, tinham significado para mim – à altura uma fedelha de 12 anos – uma troca. Na perda de país, família, amigos, escola, cão e gato, sol, mar e praia, aulas de natação, de música e de gravura e até tarecos e tralhas que as meninas dessas idades coleccionam ávida e cuidadosamente (ou coleccionavam, pois um lápis, caderno ou borracha do Charlie Brown ou da Sarah Kay vindos de Londres, era tesouros nesse tempo) restava o essencial: mãe e irmãs, porque pai “ainda lá”. E, nessa troca, tinha ainda ganho um inverno de geadas numa terra perdida lá para longe, ao largo da E.N. nº 1, coisa de cinco horas de viagem em dias sem muito trânsito, uma coisa vaga chamada “liberdade” e uma biblioteca.
Preocupamo-nos nós agora se os miúdos estão a ler coisas que são para as idades deles e eu também me preocupo, o que vem provar que passamos pelas situações e, mesmo assim, quando somos nós a decidir, achamos que temos que ter todos os cuidados e “e calhar este livro não é próprio”. Mas eu, aos 12 anos e com uma funçanguice de ler descoberta uns anos antes, enfiada no cu de Judas, com um frio de morte e uma espécie de alienação do mundo, lamentando a perda do meu, que basicamente tinha acabado aquando da chegada dessa tal liberdade, olhei para aquelas paredes cobertas de estantes e percebi que ali estava a saída que era absolutamente necessária para (ultra)passar aqueles invernos gelados e solitários de província.
Comecei numa ponta e fui correndo estantes. A biblioteca tinha uma secretária e uma cadeira (do meu avô, do qual restavam também as pilhas e pilhas dos Diários da República ou Boletins qualquer coisa de Direito), uma mesa de jogo e quatro cadeiras à volta, a lembrar-me a ausência dos primos das outras casas que, no verão, ali passavam as noites no King (o póker veio mais tarde, na mesa da sala de jantar e a lerpa e o sete e meio ainda não me eram permitidos, embora jogasse a feijões) e um sofá (do meu pai, penso) de couro preto, onde me aninhava, com o livro que estivesse a ler na altura, sempre ao som de música muito alto, da aparelhagem dos meus pais, que tinha ido para ali.
Às vezes, a minha mãe abria a porta e dizia “filha, está aqui tanto frio, anda ali para a sala para o pé de nós” e eu, de raiva contra o mundo e tudo o que ficava fora daquelas paredes protegidas por livros – outra dimensão, uma porta para a saída e por isso mesmo, classificada aparte do mundo – “Não quero! Não vou! Estou bem aqui” e “Ó mãe, quando sair feche a porta” já a empurrá-la para fora dali; olhando agora para trás e lamentando essa “miúda”, quase dez anos mais nova do que sou agora, tendo ficado sem tudo também e mais marido e com aquelas três filhas, a mais velha imersa na pior idade do armário do universo, desterrada em casa alheia e a tentar lavrar mágoas numa horta que ia cavando quando o mundo desabava. Escondia-se na sua horta, a minha mãe e eu na minha biblioteca (mas eu podia lá ficar).
Lembro-me vagamente de aulas, idas para o liceu de bicicleta, o frio nas orelhas de manhã, ainda quase noite, almoços e jantares à mesa, de manas chatas (nos seus 8 e 9 anos) a treparem árvores e a serem uns inferninhos embirrantes. Do frio, sim, lembro-me bem do horroroso frio que ali pairava como uma nuvem dentro de casa, das montanhas de cobertores na cama, das botijas, lareiras e braseiras, de não se poder andar de blusão dentro de casa e ter que o despir, quando dentro era mais frio que lá fora; e de mais umas coisas vagas, como o Natal e a liberdade e a televisão a preto e branco.
Comecei uma ponta de uma estante e li tudo, durante aqueles anos. A vaga liberdade que eu nem sabia bem o que era, era isso mesmo, aquilo que os meus pais me tinham mostrado dessa forma “podes ler o que quiseres, o que não perceberes perguntas”; livros de toda a gente, as traduções dos franceses e os Júlios Dinis dos avôs, as colecções Dois Mundos, as Pearls Bucks da minha mãe e os Thomas Mann do meu pai. Li aquela porra toda, de uma ponta à outra, entre os 11 e os 13 anos. Não percebi metade, mas uma das estantes tinha uma Enciclopédia que, nas suas dezenas de volumes, ia até à letra S. O resto perguntava. Não perguntei muita coisa, creio. Não porque entendesse, mas porque talvez tenha pensado que deveria ficar a germinar.
Algumas coisas ficaram a germinar até hoje. É o caso de “O Pavilhão dos Cancerosos”, “O Último Círculo” e “O Arquipélago de Gulag”. E, ainda hoje, não consigo soletrar de cor o nome do homem. Faço copy-paste do nome e continuo sem perceber se não deveria ter lido Alexandr Solzhenitsyn uns anos mais tarde. Mas serviu-me de contraponto brutal a todos os Leon Uris que, na altura também devorei, aos horrores dos campos e aos holocaustos: do outro lado eram igualmente maus.
Não tivesse lido aos 12 anos, seria outra pessoa de certeza (mas gosto de ser como sou).