(com um texto velho, repostando eu sei, mas que importa isso; preciso disto, de recuperar qualquer coisa que me falta imensamente é é tudo isto aqui:)
A descida
Está tanto calor. É Agosto e tudo dorme. Passo pelas ruas desertas, a loja fecha a esta hora, até o cão foi à procura de um sítio mais fresco para dormir. Eu pedalo devagar, para não me cansar na subida, tenho um saco pendurado no volante e lá dentro vai um caderno de folhas brancas, uma caneta, e um pão com manteiga açúcar e canela, o meu lanche favorito.
Chego ao cimo muito cansada. Estas bicicletas ainda não têm mudanças. São das com rodas grandes e bancos de cabedal e pesadas como chumbo. Nas subidas piores levam-se à mão. E ainda não consigo chegar bem com os pés ao chão, tenho que dar um salto quando paro. Mas leva-me para todo o lado.
No cimo vê-se tudo. Vinhas e pinhais e casinhas muito longe. Não olho para trás porque não me quero lembrar que logo tenho que voltar para casa. Ainda tenho a tarde toda!
Vou pela estrada até à descida. A descida…é uma das melhores coisas da vida. É enorme e direita e não tem ninguém a ver. Antes de lá chegar, ponho-me em pé e começo a pedalar cada vez mais depressa para dar balanço. E de repente respiro profundamente, abro muito os olhos e estou na descida.
Mesmo no meio da estrada. Não faz mal que não há carros. Sinto um barulho de vento na minha cara e o deslizar das rodas. Não vejo mais nada senão a velocidade. Apetece sempre gritar, mas parecia mal. E sinto que o mundo é todinho meu só porque também não há mais ninguém, não é? Tiro os pés dos pedais e penso ‘sem pés!’ mas nunca tenho coragem de tentar ‘sem mãos’. Quem me dera, mas acho que não sou capaz.
A descida chega ao fim. Lá adiante, no fim de uns caminhos que são só um risco onde passam os pneus, com as ervas a baterem-me nas pernas, depois dos pinhais, sei que vou encontrar um poço e ao lado um campo inteirinho de erva muito alta e que me vou deitar lá no meio a olhar para o céu e que logo a mãe me vai dizer que tenho o cabelo cheio de coisas, mas não faz mal agora. E vou ouvir uns barulhos e pensar, será um grilo não gosto de grilos são bichos mas gosto do barulho. E vou pegar no caderno e olhar para as páginas brancas e escrever coisas que mais ninguém vai ler, só minhas, e no fim vou pensar que quando for grande quero viver aqui sempre. E vou escrever também isso para nunca me esquecer.