Às vezes, escrevemos cartas uns aos outros. Cartas de coisas bonitas, cartas de coisas menos bonitas, azes de trunfo ou jokers, ganhamos, perdemos, jogamos e escrevemos. E depois, às vezes, não as enviamos. As coisas escritas…têm um som, um certo tom, outra côr que não é bem aquela com que nos vestimos todos os dias.
(até acontece que a côr é de tal forma diferente que pessoas que nos conhecem a vida inteira, nos dizem depois, essa que também és tu, começo a conhecê-la agora, não fazia ideia; e discutem coisas que escrevemos, discutem e conversam, perfeitos desconhecidos, sobre coisas que escrevemos – essas sim, com destinatário – alguém que conhecemos também presente, sem abrir a boca, porque aquela que ali se discute não é bem a pessoa que se conhece e aquilo que se discute é coisa vaga que ultrapassa as pessoas e depois decide-se que há ali um erro na teoria, quando o que se escreveu, em primeiro lugar, era apenas uma sensação e não um tratado, mas adiante que aquilo que agora refiro – coisa concreta, sobre a minha primeira crónica publicada – não tem a ver com as cartas que estão no primeiro parágrafo, mas lembrei-me e, como sempre, aluei para o lado)
De regresso às cores. Timidez, recato, vergonha, pudor, que somos aquilo mas não é bem e que cartas assim não se dizem em voz alta entre a sopa e o passa-me a manteiga se faz favor, escrevem-se e, havendo coragem, enviam-se, não havendo, rasgam-se. Ou então, mandam-se recados, pistas, procura o x no mapa, cava e encontrarás uma carta, talvez seja minha, talvez não, não confirmo nem desminto, mas olha, ela está ali! Escondem-se as cartas à vista de todos, a melhor forma de não dizer, dizendo, escrevendo para toda a gente e para ninguém, na esperança que o destinatário a encontre.
O destinatário lá acaba por encontrar a porra da carta, já farto de pistas e de andar para a frente e para trás, pensa, mas que caneco, afinal isto é comigo ou não? Lê e fica naquela, se calhar é, se calhar não, poderia ser mas por outro lado não tem certezas e vai cuscando a ver se aparecem outras, sempre a matutar se afinal é o quê, isto, mas será que é para mim, que coisa, mas é que parece mesmo e um dia lá se decide e, entre a sopa e o não te importas de me passar o pão, se faz favor, pergunta, mas olha lá, aquilo assim e assado, aquilo sou eu ou estou a ficar com alucinações? E do lado de lá, hum, pois, é que, sabes, toma lá o pão, quero lá saber do pão, mas estavas agora mesmo a pedir que te passasse o pão, esquece a porra do pão e desbronca-te mazé de uma vez!
Sim, aquela carta é connosco. Então mas e tu espetas com uma carta daquelas assim, mas ninguém percebe, ninguém sabe, só tu é que sabes do que se trata, não tem problema, e a gente, tá bem, realmente é verdade e depois acaba também a escrever umas cartinhas e a plantar pistas e a cena repete-se inversamente e é assim que funciona a coisa.
Ninguém percebe, tãoaber? Ninguém sabe.
Até ao dia em que a carta aparece noutra mão, assinadinha da silva. Olé.
Vai esta também assinada e agora ide-vos para o real caralho.
É também para isto que serve um blog.