100nada

Um sonho-conto

A noite passada tive um sonho. Tenho muitos e lembro-me deles quando acordo. Depois esqueço-me. Este fixei-o para poder contar uma história.

Sonhei com uma casa. Um jardim pequeno à frente, uma varanda grande encostada à fachada, gradeada até ao tecto nos outros três lados, um jardim dentro do jardim, mas quase casa. Conheço bem esta varanda. Reconheci-a logo. As plantas, as cadeiras e mesas de verga, as almofadas. Só faltavam o casal de cães e a minha amiga Mónica, a casa dela entre o nosso colégio e a minha casa. Numa rua o colégio, na rua de baixo a casa dela, na seguinte a minha. Lanchar em casa da Mónica é programa obrigatório, depois da escola.

Mas esta casa do sonho não é a casa da minha amiga de infância, não é a casa que ficou para trás, noutro país de outro continente, onde as casas continuam pelas varandas com grades. Sei que não é, porque sei que estou num sonho, e os sonhos precisam de cenários. Escolhi este, uma varanda de quando era pequena e, daqui a bocado, vou escolher outro, de quando já não era assim tão pequena.

E sei que é só cenário, porque a tua roupa está em cima de uma cadeira. Sei que é a tua roupa, porque a reconheço. E vejo que continuas a atirar a roupa para cima de uma cadeira. Não é bem atirar, é colocar. Vais tirando e vais colocando a roupa, um bocado a monte, mas em cima de uma cadeira. Um hábito doméstico? Não. Um hábito domesticado.

Entro em casa e já sei onde estou outra vez. Subo as escadas e passo pelos patamares. Em cada patamar uma sala ou um quarto. Nos half landings, quartos mais pequenos, a dar para trás.
Lá em cima, um último quarto, tudo desarrumado. Quem aqui vive saiu à pressa. Entro no quarto. Passo para o lado de lá das duas camas, ao lado uma da outra. Não conheço este quarto. Conheço o patamar, consigo vê-lo do lado de lá da porta aberta. E a parede oposta é uma janela. Para as traseiras da casa. Olho para as camas. Estão desfeitas, cada uma só de um lado. Do lado de dentro estão ainda com os lençóis entalados. Quem aqui dorme, concluo eu, dorme de costas voltadas para a pessoa do lado.

Saio do quarto e pela janela vejo o lado de trás de uma casa onde vivi quando era já não tão pequena. Só podia ser, olhei para esta paisagem durante anos. Conheço todas as janelas das casas do outro lado. Sei que se olhar para baixo vou ver o jardim, depois a porta para a garagem e um muro que esconde o mews. Olho para baixo.

Lá em baixo está um lago. Não é uma piscina com lados certos, um quadrado, um rectângulo. É mesmo um lago, sem forma, com margens de terra e meia dúzia de plantas rasteiras. A água é suja, verde, castanha, completamente opaca.

Estás a nadar no lago. Por isso é que tiraste a roupa. Não te vejo mas sei que sim. Vou descer e chamar-te…

Não. Não vou. Isto é um sonho. E, de repente, percebo que não sei bem se é o meu sonho ou se é o teu sonho. É perigoso entrar num sonho de outra pessoa.

E só se pode falar com estranhos, nos sonhos partilhados.

0 thoughts on “Um sonho-conto