100nada

O nosso planeta e o nosso universo

Há uns tempos recebi um .ppt engraçado, que guardei para ver com o meu filho. Era a história do planeta em 24 horas, desde a bola de fogo e os rios de lava até aos dias de hoje. Tinha micro-organismos e dinossauros e coisas giras. E tudo aquilo era às x horas. Ao meio dia (não sei se seria, creio que seriam já seis da tarde ou mesmo dez da noite), apareciam os dinossauros e o homem, aquele ainda vestido de peles que vivia nas cavernas, o tal pré-histórico, aparecia já no último segundo. 24 horas de planeta e nós – a humanidade – nem um segundo ocupava. Convenhamos que dá um bocadinho que pensar, quando a história de um planeta nos remete para o nosso humilde lugarzinho. Nem um segundo inteiro, nesse dia-vida de um planeta.

Não sei se por isso ou por outra razão qualquer, tive uma conversa com uma amiga que vê as coisas (a vida e o mundo) de uma forma que, para mim, me deixa sempre a reflectir. Estávamos a conversar sobre “salvar o planeta” e ela disse-me qualquer coisa como “atenção: quando falamos em salvar o planeta, estamos de facto a falar sobre salvar o planeta para nós. Salvar a sobrevivência da raça humana no planeta, porque o planeta está-se bem nas tintas e organiza-se com ou sem nós. Temos esta mania que a vida somos nós e mais uns bichos e umas árvores, mas a vida é muito mais que isso, ou muito menos: pensa que há outras formas de vida e que, se calhar, sobrevivem depois de deixarmos de cá estar, como por exemplo os vírus.”

E eu a matutar naquilo. Fiquei mesmo a remoer os vírus, confesso. Um gajo ser assim substituído por um cabrão de um HIV ou Ébola e o planeta cagando e andando; e a gente ter ocupado o nosso micronésimo de segundo e depois outra coisa qualquer nas seguintes 24 horas feitas de biliões de anos. Outro tipo de vida qualquer. E o planeta, se calhar, até mais contente, aos menos estes vírus não me andam a picaretar a superfície dia e noite. Em suma, não me conformo com os vírus, mas remeti-me ao meu grão de areia de segundo de reflexão.

Não vou dizer em grande detalhe (até estava a pensar que sim, mas passo rapidamente sobre esse assunto) que tratemos bem nosso planeta: não tratamos nada bem, toda a gente sabe e eu lá faço o meu esforço para a pegada não sei quantas, para salvar o planeta para servir mais um bocado de tempo a raça humana. Mas realmente não sei se merece: a raça, não o planeta, esse é indiferente a todo esse esforço, quando precisar de se organizar, logo manda vir uns vulcões e mais uns quantos soluços que arrase tudo. A raça humana, convenhamos, é uma espécie parasita, não serve rigorosamente para nada: não produzimos oxigénio, não polinizamos, nem sequer filtramos água. Animal, vegetal, mineral com utilidade e mais uns bicharocos que picaretamos por aqui e por ali e sujamos tudo. Até as baratas comem merda, nós é mais produzi-la. Claro, temos intelecto e alma, o que nos permite pensar e canalizar os instintos para a matança do resto da raça, o que também é uma coisa simpática. Só porque o bicho tem a pele de outra cor ou se cobre de panos, siga, não serve para o planeta. Para o nosso, que cada vez se torna mais pequenino e acaba, basicamente, ali no fim da rua.

Tudo isto, obviamente, por causa de tremores de terra, maremotos, explosões em centrais nucleares e manifestações da sociedade civil. Tudo no mesmo fim de semana, com escalas tão dispares. No nosso bairro, o nosso universo, vários milhares sairam à rua e disseram, cada um com a sua voz e pelas suas razões, já chega disto, queremos outra coisa. Enquanto do outro lado do mundo, o planeta dava um soluço e causava uma calamidade pavorosa. Há calamidades e calamidades, há essas e há das outras, menos mediáticas, mais selvagens, mais brutais, mais desumanas por serem pela mão de seres humanos. E o nosso planeta, absolutamente nas tintas.

Remeto-me para o meu micronésimo de segundo. Egoísta, talvez, mas é o meu. Horrorizo-me com as calamidades, tenho pesadelos que sejam aqui no meu bairro, na minha rua, na minha casa. Emociono-me com o passeio cívico, penso, ainda há esperança neste bairro, neste país, neste nosso segundo. Só temos este, teremos que ser egoístas até um certo ponto, na medida em que há que vivê-lo enquanto dura. De forma decente, sem qualquer dúvida, pensando no futuro, como é evidente, mas acima de tudo, no presente, no dia que agora ainda temos e que nos pode ser tirado a qualquer momento, numa onda ou numa poeira radioactiva ou na pedrada que voa e não acerta no alvo.

Enquanto o nosso planeta uivava, talvez aos nossos ouvidos um bocado mais alto (noutras alturas não ouvimos ou fazemos de conta) e, no nosso universo as pessoas saíam à rua, no meu universo, dois miúdos, encantados porque iam passar o fim de semana juntos, jogavam à bola. Mais três que por ali andavam de bicicleta, foram também jogar. A mãe de um deles, emocionava-se entre a tristeza e alegria, entre o maremoto e a Avenida da Liberdade, enquanto os vigiava pela janela. Os miúdos jogam à bola e não querem saber do futuro a não ser que traga mais um domingo também com tempo para jogar mais bola. Não se estão nas tintas para o planeta, querem salvá-lo (para a raça humana) e reciclam e preocupam-se. Desde que se jogue à bola, no entretanto.

Não há nenhuma conclusão neste post, nenhuma moral da história. Que seja um segundo longo, é a única coisa que se pode desejar. E, já agora, que se jogue à bola.

4 thoughts on “O nosso planeta e o nosso universo

  1. Susie

    (deu-me um trabalhão escrever este comentário mas não pude deixar de o fazer)

    Achei a reflexão genial… de facto é bem verdade aquilo que dizes. A nossa estada por estas banadas irá acabar e nunca passaremos de um cagagésimo de segundo na história do planeta.

    Fosga-se…

  2. SOD, o Pérfido

    Devias ligar agora o canal História para veres um pouco do Universo.
    As baratas não comem merda. Comem o que lhes deixamos a jeito.

    Nada melhor para definir a raça humana que o diálogo do Mr. Smith com o Neo no primeiro filme da saga: nós somos como os vírus.

    Também há uma música boa dos Mata-ratos sobre a raça humana…

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