100nada

Dia 14 de Fevereiro

faria anos o meu amigo J.
Durante quase vinte anos, o hábito era ir jantar a casa dele nesse dia. Nós, os amigos. Fizemos jantares em vários sítios, sempre nas casas onde ele viveu, mas não me lembro de se ir jantar fora nessa noite. Saíamos depois, claro, mas o jantar era sagrado: em casa.

Não queria escrever sobre o J. aqui, não por ser aqui, mas por nunca querer escrever sobre ele. Há uns dias escrevi noutro lado o enorme perigo que é escrever sobre as recordações:

Há coisas que são impossíveis de descrever. Apenas muito toscamente, com medo de, por tentar passar para o papel, desfazer aquela memória. Quando a escrever, é essa que fica. É o risco que corro: se não escrever, posso mais tarde esquecer-me. Se escrever, será isso que ficará. Nunca será aquilo que foi realmente, apenas um retrato. Não sei se as fotografias apagam ou avivam as memórias. Não sei.

E eu quero lembrar-me dele como ele era, não a fotografia, a pessoa. Mas há coisas tão fixas, em que a fotografia é tão ele, tão J., tão apatetado às vezes e ao mesmo tempo tão enternecedor…

O penúltimo jantar foi há quatro anos. Iamo-nos revesando ao lado no sofá dele, os outros à volta, a conversar de coisas de nada, a contar coisas, ele sempre a querer saber tudo. No fim (não, no fim não; antes do fim) ele acabava por saber rigorosamente tudo, com telefonemas diários e visitas dos amigos e as novidades todas, toda a gente queria ter uma novidade para lhe contar e ele depois partilhava com os outros, tu sabes que ela agora tá naquela coisa das agulhas para emagrecer, olha, ele levava hoje o carro à revisão mas ainda é capaz de aparecer ao fim da tarde, mas eles andam mesmo, não sei, mas ontem ele não dormiu em casa, disse-me a irmã e…e depois foi a minha vez de me sentar ao lado dele, nessa noite de Fevereiro de 2000.

Disse-lhe assim, J. tenho uma coisa para te contar.

Fez-se um silêncio à volta, toda a gente sabia o que era, mas eu tinha querido ser eu a contar.
(Também ele me levou um dia a jantar, no Verão de 1991, creio eu, e à sobremesa contou-me. E disse-me, esperei que voltasses, eles sabem desde Janeiro mas eu não queria estragar-te os últimos tempos lá e queria ser eu a contar-te. Aqui no teu restaurante favorito, Catarina, assim não é preciso chorar nem fazer dramas, nem podes, olha o dono, é um dos homens mais bonitos de Lisboa, vê lá que dás cabo da pintura dos olhos…não te preocupes, não é nada, mas queria ser eu a contar-te. E eu, a olhar para a toalha da mesa e a pensar, não é justo, não é justo, não é justo…)

J., tenho uma coisa para te contar. Vou ter um bebé.

E ele, de imediato, Vais??? Mas olha…e o pai sabe???

É essa gargalhada, a que ele conseguiu arrancar a vinte amigos ali à volta, naquele preciso momento, ele a fazer rir os outros…é dessa gargalhada que me quero lembrar sempre.

0 thoughts on “Dia 14 de Fevereiro

  1. Ana

    Há quem diga que estamos vivos enquanto houver alguém que nos recorde.
    O teu amigo está bem vivo. Gostei da forma como o recordaste.

  2. Gotinha

    És uma xunga, Cat! O 1.º Blog que visito hoje e fico logo com as lágrimas a quererem saltar dos olhos…. para a próxima levas!!!!
    😉