Conto de Natal (versão completa embora inacabada de 2003)
[por inteiro, o meu Conto de Natal inacabado; já nem me lembrava dele, nem me parece que fosse possível alguma vez continuá-lo. No entanto, fica aqui, na versão completa. E agora, a reler o princípio e a pensar, que nessa altura ainda não tinha lido o “Charlie and the Chocolate Factory”]
Era uma vez…
um menino pobrezinho que vivia numa aldeia perdida onde não havia televisão nem BB nem nada…Um dia na loja da aldeia, cuja montra apresentava, no meio de pó de décadas, postais ilustrados a preto e branco de cantos enrolados e amarelecidos, caixas de remendos de pneus de bicicleta, piaçabas e bacias amarelas e azuis, e uma vassoura num canto (onde viviam quatro famílias de aranhas que se davam todas lindamente), apareceu…
…um milagre!
Era uma caixa larga e baixa, que tinha na tampa o retrato de um menino a estender as mãos para uma lareira e uma lágrima muito redonda e transparente a correr pela bochecha vermelhinha abaixo…e por cima, uma palavra que o menino pobrezinho e sem escolaridade (a escola mais próxima era a vinte quilómetros, não havia estrada e o menino também não podia ir, tinha de ajudar o pai no pequeno campo enregelado de madrugada, onde a custo sobreviviam umas batatas e umas couves) conseguiu soletrar devagar (à noite, a mãe ensinava-o a ler com o livro que lhe tinha ficado de herança, juntamente com dois lençóis de linho, de uma senhora em Lisboa, onde tinha servido, até se casar com o primo Ernesto, depois de descobrir que as esperanças num risonho futuro a dois, que lhe tinha dado na Festa de Nossa Senhora dos Prazeres, tinham passado à realidade):
C-h-o-c-o-l-a-t-e-s.
As cores da tampa brilhavam e resplendiam no meio do pó da montra, e pareciam ao menino pobrezinho que deviam ser assim as luzes de Natal desse país maravilhoso, que a mãe descrevia, essa Lisboa mergulhada em luz e brilho, em música e ouro, esse país impossivel onde não havia geada quando se levantava à hora em que ainda havia estrelas no céu, onde os dedos não se tolhiam na lama que cobria as batatas, onde meninos iguais a ele sorriam durante todo o dia e iam a um sítio especial onde lhes ensinavam coisas, coisas que ele queria desesperadamente saber, porque é que a lua tinha tantas caras, para onde iam as andorinhas no Inverno, porque é que as batatas morriam todos os anos…aquela caixa era o símbolo do paraíso. E o menino pobrezinho estendeu as mãos para a montra e uma lágrima abriu um sulco na lama que lhe cobria o rosto.
E nesse preciso momento…
Nesse preciso momento, o menino pobrezinho sentiu uma vontade avassaladora de possuir aquela caixa. Era uma vontade absoluta, uma vontade que, num segundo, o transformou de criatura de Deus em desejo puro. Esqueceu a lama que o cobria, o calor gelado que a fome lhe deixava sempre no estômago, a cor roxa dos dedos dos pés nos sapatos de calcanhar cortado, a curiosidade sobre o mundo que desconhecia mas adivinhava existir para além do seu, e fixou o olhar na caixa da montra, como se ela já lhe pertencesse, como ali tivesse aparecido com a única finalidade de ser dele. Porque, no coração do menino probrezinho, aquela caixa era dele e de mais ninguém. Queria tê-la, poder correr para casa com ela debaixo do casaco remendado (tinha sido do pai o que era muito bom, porque lhe cobria as pernas, pois o Ernesto, apesar de pobre, era um homem de figura considerável, mercê talvez da dieta saudável de farináceos e leguminosas, embora sempre em insuficiente quantidade), queria poder chamar “Mãe!” e quando ela viesse à porta com aquele sorriso aberto de quem olha para o seu mais precioso bem, o menino probrezinho poder abraçá-la, abrir o casaco e dizer “Olha! É para ti! Feliz Natal!”
Imaginava já ver o brilho nos olhos da mãe, aquele brilho que se acendia como uma luz, quando à noite, depois do jantar, se sentava à beira da cama dele e lhe dizia, queres uma história agora? E lhe contava histórias de senhoras elegantes de vestidos de rendas, homens aprumados de bigodes encaracolados, carruagens e cavalos de crinas entrançadas com fitas coloridas, de meninos de chapéu de palha e fatos de marinheiro, de barcos no rio que partiam através de um longo mar que escondia outros mundos, ainda mais maravilhosos e distantes …e às vezes, já quase adormecido e antes de sentir os lábios da mãe suavemente pousados na cara, ouvia-a dizer muito baixinho: “Ah, meu querido filho, tudo isso é muito bonito, mas a melhor coisa do mundo, a melhor de todas, é poder trincar o paraíso e senti-lo derreter-se lentamente na boca: só há uma coisa de que eu tenho realmente saudades, e essa coisa, meu filho, são chocolates…”
E numa dessas vezes, em vez de sentir a mãe afastar-lhe após o beijo de boa noite, sentiu pingos na cara e ficou muito quieto, de olhos fechados e a respirar profundamente, e quase que ouviu (mas não teve a certeza) a mãe sussurrar “Queira Deus que nunca os proves…as asas que o sabor dos chocolates te derem, serão cortadas pela vida e pelo eterno sabor das couves. Mas a dor de saber que um dia as tiveste, essa nunca mais desaparece…”
Seria realmente feliz, a mãe do menino pobrezinho, aquela Lurdes que dez anos antes, num dia quente de Verão, tinha regressado à aldeia, para passar uns dias com a família? Tudo lhe tinha parecido tão bonito! As casas de pedra, as árvores carregadas de maçãs, o céu muito azul, o cheiro da terra, tão diferente do cheiro a restos de bacios despejados pelas janelas nas ruas de Lisboa…mas nada se comparava ao brilho do olhar de um rapaz alto, que a tinha convidado para dançar na Festa de Nossa Senhora dos Prazeres, a ela, Lurdes, com o seu vestido de riscas, costurado à noite no quarto, depois de fechadas as portadas da casa de Lisboa e escovado cem vezes o cabelo da senhora, roubando as horas ao sono e seguindo um figurino moderno, com o tecido que lhe tinha custado vários meses de poupança…queria ser bela, Lurdes, e porque não? Toda a noite dançou com aquele Ernesto, sem ouvir os comentários das velhas, e ao amanhecer ele prometeu-lhe o mundo e ela, abrindo o coração, deu-lhe todas as esperanças que podia dar. No Verão tinha regressado à aldeia para férias, menina loira e solteira, no Natal já lá vivia, mulher casada, costurando à noite, desfeito o vestido de riscas em cueiros e lençóis, o sabor dos chocolates esquecido no sorriso de esperanças para a Páscoa.
Em Lisboa, D. Maria Genoveva Abenticalli de Souza, uma senhora sensata que não queria perder a criatura que melhor a sabia pentear, pensara, se esse Ernesto sabe de couves não lhe deve ser difícil tratar das rosas. Tinha prometido ser a madrinha, se o feliz casal se mudasse para a casinha do fundo do jardim e o Ernesto entretanto aprendesse a guiar. Mas o Ernesto declinara a proposta, decidido que estava a produzir couves cada vez maiores, para um dia poder realizar o sonho de ser o feliz contemplado com o Primeiro Prémio da Excelência da Couve na Feira Agrícola mais importante da região. E nos sonhos mais impossíveis via-se até a ganhar o Prémio Couve de Portugal. O que não via era qualquer futuro nas rosas.
A promessa de amadrinhar a vindoura esperança de uma Lurdes (um pouco chorosa com esta decisão do marido), não deixou de se cumprir, mas com uma condição: a criança teria de ir para Lisboa, para ser criada condignamente com a condição de afilhado de uma Abenticalli de Souza. Até lá, receberia apenas a benção da madrinha, o que, na opinião sensata de D. Genoveva, só ajudaria: quantas mais privações passasse a infeliz criança, mais cedo iria para junto dela.
Mas, perguntarão os leitores (ou não perguntam, mas eu estou-me nas tintas, que na literatura abundam estas figuras de estilo), qual a razão de tanto interesse de uma Abenticalli de Souza num menino pobrezinho, filho de uma Lurdes qualquer? Ela (Lurdes) nunca se questionara acerca disso, ingénua que era, acreditando sempre que o mundo era feito de bondade, sacrifício e corações doces, recheados de caramelo e amêndoas. Mas a verdade, ah a verdade, meus amigos, essa nuvem negra e tenebrosa, que Lurdes desconhece ainda, ireis vós de imediato saber!
Maria Genoveva Abenticalli de Souza, senhora de uma fortuna considerável e de uma cabeleira luxuriante (primorosamente escovada todas as noites, pela criada de dentro, e que saudades de Lurdes e das suas mãos de fada…) apresentava um passado sem mácula. Educada nas Irmãs de Santa Cunegundes, aprendera receitas conventuais e, demonstrando uma aptidão fora do comum para línguas, fora também instruída nesse sentido, tendo as irmãs inclusive contactado os conventos da ordem noutros países, para um intercâmbio de alunas.
Genoveva partira assim para o estrangeiro, de onde voltou dois anos mais tarde. No seu regresso, todo o convento comentara o perfeito domínio que agora demonstrava não só da sua mas igualmente de outras línguas. Concluiu-se que aquela forma de educação lhe alargara os horizontes (e também ligeiramente as ancas, provavelmente devido à cozinha local dos sítios onde estivera).
Satisfeitas, as irmãs consideraram que Genoveva estava pronta para deixar o convento, de onde saiu, directa para um glorioso debute, a que se seguiu um prolongado noivado com o Conde de Abenticalli, uma vez que este não queria ofender os filhos e os netos com um casamento ainda dentro do período de luto pela anterior Condessa, vítima de uma fatalidade da caça ao javali.
Pelo Natal (não esqueçamos que se trata de um Conto de Natal), Genoveva acordou, um dia, com um ramo de flores de laranjeira ao lado, aquele que horas mais tarde haveria de carregar até ao altar onde a esperava o feliz Conde. A felicidade dos noivos foi intensa mas curta: nessa fatídica noite de núpcias o débil coração do Conde não aguentou tanto empenho…e Genoveva acordou viúva.
Deixemos Genoveva de manhã, a saltar da cama e a esfregar os olhos, perdida de sono e de contentamento, ela não sabe ainda que o Conde não costuma dormir até esta hora tardia, temos tempo depois para os gritos e os desmaios…o que é urgente agora é regressar para junto daquela figura imóvel há vários capítulos (aí uns dois, não?), de nariz colado a uma montra poeirenta…é que está muito frio e os pés do menino pobrezinho estão a ficar cada vez mais roxos. O que pensa esta criança, em vésperas de Natal, continua a querer a caixa de chocolates? Claro que sim, poderia ter ali ficado para sempre, uma estátua parada entre o desejo e o desalento. Ele sabe que nunca a terá, mas isso só o faz querer ainda mais, porque é dele e de mais ninguém.
Mas Anunciado de Jesus acabou de aviar a última cliente, três quilos de farinha, meio metro de fio, um litro de azeite e ela exigiu as compras embrulhadas. Anunciado não gosta de dar papel, ele vende papel. E cada vez que olha para a montra vê um nariz esborrachado e decide que assim não pode ser. Não mandou vir a caixa de chocolates para agora estar aquele palerma ali colado à sua montra, assim ninguém mais a vê. Tem esperança de vender algumas, mas é preciso que se saiba que aquele artigo está também disponível. E avança para o menino pobrezinho, voz grossa, olha lá, não tens mais que fazer? Havia eu de ser teu pai, mas com um pai como o teu, ninguém se admira que o filho seja um inútil…
…e o menino pobrezinho acorda de repente do seu sonho encantado e finalmente sente o frio. Abre a boca para responder, sem pensar, com a raiva de quem acaba de ser insultado mortalmente (quem quer insultar um adulto insulta a mãe, mas para um rapaz pequeno o insulto grave é ao pai) e grita, Vá para o diabo que o carregue! E depois fica em silêncio, como se as palavras ainda não tivessem sido ouvidas, só ditas. E Anunciado de Jesus ainda não as ouviu, na verdade. Entraram pelos ouvidos mas ainda estão às voltas na secção de incredulidade. Depois passam pela secção do medo (Anunciado é um homem de fé, mas por vezes, quando engana as clientes no troco, sente um frio a soprar-lhe as orelhas e benze-se sempre). Quando finalmente atingem a secção do entendimento, a resposta é automática. O menino pobrezinho aterra na lama (não que lhe faça muita diferença, mas a que tinha agarrada ao corpo entretanto tinha secado) agarrado à cara e não fora Lurdes aparecer nessa altura, teria talvez mais algumas nódoas negras para tratar nessa noite.
Lurdes é mãe. As mães disparam primeiro e perguntam depois. Ela não é diferente. Atira-se a Anunciado de Jesus e agarra-o com força (finalmente Anunciado recebe o abraço que esperava há mais de quinze anos) e depois empurra-o, gritando sempre, o meu filho, seu bruto! Ai, meu filho! Que é que te fizeram? enquanto limpa (sem grande sucesso) a lama e o sangue que escorrem do nariz, agora sim verdadeiramente esborrachado, do menino pobrezinho.
Genoveva grita. Ainda sem acordar, grita. Há mais de trinta anos que as criadas avisam as novas, não te assustes, a senhora grita sempre de manhã. Depois pára. Há trinta anos não parara. Gritara sempre, durante dias e dias, durante o enterro do Conde, durante as rápidas manobras políticas da nora para se tornar Condessa, durante o tempo em que os filhos do Conde tinham decidido que o que ela queria, sempre tinha querido, era dinheiro, muito dinheiro, e tê-lo-ia, se abdicasse do título. Genoveva gritava. Nunca ninguém soubera o que tinha acontecido quando ela finalmente resolvera acordar o Conde, na manhã em que ficara viúva. Apenas os gritos e os olhos fixos num não-se-sabe-onde, enquanto os desmaios iam acontecendo à sua volta. Talvez se tivesse desmaiado, talvez se tivesse chorado, tivesse direito à compaixão de alguém. Mas gritos são uma coisa desagradável e demente.
Também não se sabe o que a Madre Superiora do Convento das Irmãs de Santa Cunegundes lhe disse depois. Mas resultou, e isso é que interessa. Genoveva calou-se finalmente e os gritos passaram apenas a uma rotina matinal. Durante meses foram os únicos sons que produziu, fechada no seu quarto de solteira. Todos os dias o Convento era acordado pelos seus gritos, e as irmãs rezavam pela sua alma, mas as pessoas habituam-se a tudo. Aos poucos chegou a Primavera e Genoveva transformou-se numa figura silenciosa, que passava os dias nos jardins.
Quando se conhece bem o jardim onde se passeia todos os dias, quando todos os caminhos são familiares, quando, de manhã, os pés descalços reconhecem a relva fria e molhada, quando não se é capaz de ver as folhas das arvores a crescerem na Primavera, porque todos os dias está sempre igual, quando tudo isto desaparece e no mesmo lugar surge de repente uma floresta virgem com monstros escondidos, é preciso aprender tudo outra vez. É preciso calcorrear todos os caminhos, espreitar debaixo de todas as pedras, é preciso que as pontas dos dedos sangrem a cavar o chão, para que nada fique por descobrir, para que tudo se torne familiar outra vez, mesmo que seja tudo diferente.
Quando as macieiras deram flor, Genoveva nasceu outra vez e as cicatrizes ficaram presas aos sonhos das suas madrugadas.
FIM (sim, assim a meio, foi como ficou)
- Os anjinhos de Natal
- Das coisas estranhíssimas que nos acontecem quando sonhamos
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Desde que li aquela coisa do Dickens em que aparecem fantasmas e um avarento, nunca mais tinha lido um conto de Natal tão bonito.
Quando saberemos mais sobre o menino pobrezinho de nariz esborrachado e sobre a doce Condessa?