De vidros partidos debaixo dos pés
Em conversa séria com amiga chegada, há uns tempos, apresentei-lhe a teoria do poder de magoar. Ela gostou, claro (da teoria em si); é uma teoria sólida que se comprova todas as vezes. Um gajo é que nem sempre pensa na coisa nesses termos.
É uma teoria (e uma prática) muito simples. Nós, quando nos entregamos a alguém, oferecemos um flanco, ou dez ou vinte, ou até todos. Em entrega, oferece-se o poder de magoar. Assim, naquela, como quem diz “aqui estou eu completamente descalça para ti, mas agora vê lá se não partes nada e me atiras os cacos para debaixo dos pés, que isso não está no contrato”. Mas claro que está, como é evidente. Um gajo espera é que não aconteça. E, claro, acontece sempre. Nem tem que ser propositado do lado do outro, mas acontece sempre, por qualquer razão, muitas vezes estúpida, apenas por desconhecimento puro de como a outra alminha funciona. E a alminha que se descalçou está, ela mesma, um vidrinho prestes a estalar e nem sempre se percebe exactamente que cacos são aqueles que se pisam num dado momento.
Entendida a teoria e sabendo que acontece sempre, há alguns mecanismos de defesa, por assim dizer, o principal dos quais sendo o saber que é assim e não se valorizar demais as pequenas mágoas azaradas de palavra errada em tempo menos certo ou coisas assim. Mas é sinal absolutamente seguro de que se sente alguma coisa quando aparece, pela primeira vez, aquele gelo à volta de qualquer coisa que nem sabemos muito bem o que é, aquele frio que vem de qualquer lado e nos deixa assim, meio atarantados e baralhados (e vagamente magoados, mas isso nem sequer se percebe bem).
Nada disto é grave enquanto não se usa propositadamente esse poder que nos foi oferecido. E, quando digo propositadamente, não quero dizer que uma pessoa o use mesmo com o intuito puro de causar estragos na outra. Isso é todo um outro tema. Não. Este propósito a que me refiro é aquele que pavimenta a estrada das boas intenções ou a distracção consciente, aquela que age assim como “ah não faz mal, que isto é tudo a brincar e tal” ou “não, não tem problema que não estamos minimamente nessa onda”, enquanto se enche o ego ou o bocado de vazio que se tem dentro com a ilusão de qualquer coisa para a qual não se tem tomates para transformar em realidade. Essa merda é que tá mal. É admissível até aos 14 anos, vá , porque a partir daí uma pessoa tem a obrigação de ter algum respeito pelos sentimentos dos outros, sejam eles quais forem (sim, é também disto que aqui se trata). E, depois de sermos todos crescidinhos e mais ou menos civilizados e decentes, normalmente a rapaziada – ou melhor dizendo, o mulherio, mais precisamente – costuma meter a coisa em pratos mais ou menos limpos, se a coisa é para ser em onda levezinha ou se é coisa que mete um bocado mais de alma e de vidros perigosos e o outro lado tem que perceber que não é nada nada nada bonito agarrar a entrega e o poder de magoar e, a seguir, torcer a coisa. Não é bonito e mais grave ainda, não é – de todo – coisa de homem. Muito menos de bem. Ou de mulher de bem, para satisfazer os leitores que já levaram com dessas em cima. É, pura e simplesmente, uma cobardia nojenta. E não tem desculpa.
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Catarina:
Fala de amor ou de amizade?
E pronto, tá uma gaja a pensar uns pensamentos assim meio imprecisos e chega aqui… agora já não preciso de ir a mais lado algum.
E sabine, na minha perspectiva, isto tanto se aplica ao amor-romântico como ao amor-amizade.
Pelo sim pelo não, é melhor andar de tamancos…
muito bom… não só o texto como viver descalço! mesmo correndo o risco de poder pisar vidros! É sempre melhor que os desconfortáveis tamancos que nos deixam bolhas nos pés e nos colocam lá no alto distante de todos os que estão cá em baixo descalços a divertirem-se, não nos permite correr, caminhar, subir e descer montanhas tão rápido!
eu não gosto de vidros, nem de cacos. creio que nestas coisas do magoar ou não, do ser magoado ou não, não há fórmulas mágicas. e cada caso é um caso, porque as pessoas têm maneiras de sentir diferentes.
não precisas incluir as mulheres (na tua nota final). essa é uma forma (emudecida) de cobardia exclusiva do homem. as mulheres, quando se acobardam, não é assim.
Eu concordo que é impossível não entregar o poder de (nos) partir quando nos entregamos de corpo e alma; e por isso recorremos aos tamancos, quando nos fartamos de ter os pés em ferida. Até que acontece o milagre de encontrarmos alguém em quem confiamos tanto que sabemos que podemos andar descalços à vontade, porque nunca nos atirará cacos para debaixo dos pés; pelo contrário, andará à cata de eventuais vidros espalhados no chão para os retirar do nosso caminho. E assim ousamos voltar a andar descalços e redescobrimos como é bom!
Bonito. Triste, mas bonito.
Mas a questão maior, na minha óptica, nem é a do elefante (sim, concordo q o macho é muito mais propenso a estas atitudes) na loja de cristais, é o prazo do contrato. Foi bem definido de início? Então cumpra-se 😉
Palavra de horna que se aqui estivesses te dava um abraço caramba. É mesmo isto, é uma merda mas é mesmo assim. E não é que me avizinho de mais uma e ando vai não vai para fazer a mesma asneira. Desta vez com amis defesas claro, mas a mesmissima crente de sempre.
Cat
Mais difícil do que a entrega que falas é quando descobres alguém que te conquista e te dá total confiança e te entregas descalça…mas descobres que além de ainda teres de apanhar os cacos que foram deixados por outros (os quais te magoam), esses cacos não deixam o outro confiar, acreditar que não há fórmulas certas e descalçar-se também…