Farrapos de contos não escritos (2)
Quando voltava já tarde, olhava para a casa adormecida e silenciosa, algumas portadas fechadas. Por detrás das do quarto dos meus pais, distinguia-se uma luz, a minha mãe a ler. Às vezes um candeeiro aceso na sala, o meu pai a ler. As insónias só passam longe da cama, dizia ele. E passava noites e madrugadas a ler na sala. E a partir de um certo Verão, não sei se aquele se outro, todos se confundem, passei a olhar para o telhado quando voltava para casa e no canto ao lado de uma das janelas do sotão, distinguia uma sombra com uma luz na mão.
A primeira vez que a minha irmã mais nova foi apanhada no telhado, desculpou-se com o gato, que tinha fugido, que tinha medo que ele caísse…o meu pai disse-lhe que os gatos sabiam andar em telhados, quem caía eram as meninas pequenas e os pais estavam muito tristes e preocupados. Ela chorou, prometeu não voltar a fazer…e passou a ir para o telhado quando toda a gente dormia e não havia perigo de ser descoberta.
Só acendia a lanterna de vez em quando.
Iluminar o escuro. Não entrava em lado nenhum que estivesse escuro. Acendia sempre uma luz primeiro. Não era medo, não tinha medo nenhum. Não tinha medo de quase nada. O que lhe parecia era que no escuro as coisas não se viam porque não estavam lá. Desapareciam quando a luz se ia embora. A luz ia embora, e tudo ia embora também. E quando aparecia a luz, voltava tudo. E ela achava sempre que nada estava exactamente no mesmo sítio. Quando a luz ia abaixo ela fixava aquela última imagem ainda iluminada, ficava muito quieta e, quando a luz voltava, estava tudo diferente, os móveis um pouco fora de sítio, e as pessoas tinham mudado de lugar. E esse era o medo dela. Que as pessoas mudassem de lugar. E que um dia mudassem tanto de lugar que, quando voltassem a aparecer, já não conseguissem encontrar o lugar certo. E ficassem no sítio onde estão todas as coisas que desaparecem sem conseguirem encontrar um caminho de volta.
E depois descobriu um sítio onde, por mais escuro que estivesse, nada mudava de lugar com a luz. O que via do telhado à noite era sempre igual. Ela ficava ali a ver as sombras a mexer com o luar, com as nuvens, mas quando acendia a lanterna e apontava, estava sempre tudo no mesmo sítio. E nas noites mais escuras, quando não se via quase nada no escuro, a luz da lanterna indicava que continuava tudo exactamente na mesma posição. Essa era uma certeza que a deixava tranquila. Todas as noites subia ao telhado para se certificar que o mundo não se tinha ido embora.
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Se fosse possivel termos um telhado a que subir todas as noites da nossa vida… Lindo, Catarina!
Não tenho tempo para ler tantos textos quanto queria e, por isso não tinha lido nada neste.
Lendo, agora este sei o que tenho perdido.
É fácil de ler, conta-nos uma história engraçada e transmite-nos uma grande lição.
parabéns.
Joao Norte.
consigo imaginar a luz do luar a penetrar o ´recinto, nao mais necessário a lanterna para verificar q tudo tá no lugar.. mui bello
O pior é nem sempre conseguirmos encontrar a lanterna e faltar-nos coragem para subir ao telhado. Percebemos no fim (apenas) que já não encontramos mais o lugar certo…
Espectacular!
Acendeu a luz do meu final de tarde, dando-me a “ver” um belo texto.Obrigada. Lindo mesmo.
Que lindo, sim senhora mesmo muito lindo estes esparrapados contos. Infantilidades …
Um impulso levou-me a estreitar o teu blog a estas horas tardias…eu que nem abro o pc ao fim de semana. Ainda bem :-).
Um bom e “tranquilo” Domingo!
xxx