Farrapos de contos não escritos (1)
Estive na quinta este fim de semana. O portão tinha um cadeado mas o muro está meio desfeito e descobri um sítio sem muitas silvas onde se conseguia saltar. Depois do portão encontrei a memória de um caminho, dois carreiros de terra separados por ervas e papoilas. Fui andando devagar, naquele silêncio de sol, cigarras e abandono. Ao longe ainda se ouviam alguns carros na estrada, depois mais nada, só os meus passos abafados pela areia. Lá ao fundo a casa invadida pela hera, um monte verde de pedra caída. Não me aproximei dela, olhei para o outro lado, o das árvores. Pareceram-me felizes, libertas de mãos de jardineiros, a crescer para onde querem. Algumas caíram, talvez as tempestades de inverno, e ali ficaram a suportar outras que vingaram.
A primeira vez que te vi, contaram-me depois que te dei um estalo. Nesse tempo ainda não sabia que não se batia nas meninas que nos roubavam os brinquedos. Era um tractor, ainda me lembro porque ainda o tenho. Não me lembro de te ter dado o estalo, mas provavelmente foi merecido. De qualquer modo, devo ter ficado sempre agradecido por não teres chorado. Contaram-me depois que só olhaste para mim, com a cara muito vermelha, atiraste o tractor ao chão e viraste-me as costas. E nesse verão nunca mais te vi.
A primeira vez que me lembro de te ver, tinhas uma camisa de noite diferente da das minhas irmãs. Estavas sentada na mesa do pequeno almoço – tinhas chegado na véspera já tarde – com uma t-shirt branca que te chegava aos joelhos e na frente tinha o desenho de uma boneca que até aí eu só tinha visto em bonecas de papel.
Não foi nada fácil manter aquele segredo. A uma pessoa já era complicado, a duas quase impossível. E tu não tinhas prática de te esconderes. Claro que te escondias em casa, na tua vida, mas escondias-te de pessoas que não tinham vontade de te encontrar. Dos teus pais, sempre ausentes, não era preciso. Mas nesse Verão aprendeste a esconder-te de quem te queria sempre por perto, de quem não entendia as tuas escapadelas, de quem queria também ir. As minhas irmãs não percebiam aquela necessidade de estar sozinha como tu dizias e foram precisos vários dias em que realmente ficaste sozinha para que desistissem de ir atrás de ti. Eu ia vendo as tuas tentativas, sempre escondido, e nunca apareci até me parecer seguro. Espiava-te de longe, uma sombra no meio das árvores, apenas mais uma, à hora em que as sombras se alongam e se juntam numa só e no céu ainda claro se começam a distingir as primeiras estrelas.
A primeira vez que te apareci olhaste para mim tão admirada que pensei que já te tinhas esquecido daquele pedido e que afinal querias mesmo estar sozinha. Estavas sentada no chão, encostada a uma árvore, encolhida com os joelhos dobrados e com os braços à volta dos joelhos, e só me viste quando eu estava já ao teu lado. Levantaste a cabeça e ficaste calada, mais um dos teus silêncios, aqueles que eu começava ali a descobrir. Eu estendi-te o maço, um pouco amarfanhado e sujo de terra, não me atrevia a guardar os cigarros comigo. E tu sempre calada tiraste um cigarro e só depois é que disseste obrigada. Tens lume? E mais uma vez constatei que as raparigas são sempre um bocadinho parvas quando dizem estas coisas, apeteceu-me dizer-te não ó estúpida só tenho os cigarros para vista, mas dei-te os fósforos. E tu abafaste uma tosse quando o acendeste, mas não me conseguiste enganar.
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Gostei muito.
Ah, tinha saudades deste 100nada! Obrigado
Eu também! Está excelente.
adorei!
Nem sei que diga…está tão bonito que quase conseguimos ver o cenário. Devias fazer isto mais vezes, sabes?