Conversas de folhas
Tenho andado de nariz no ar (quando vou fumar lá fora) e vou inspeccionando as árvores e a Primavera. Entre cigarros, verifico que esta é a estação mais violenta do ano, aquela em que a sobrevivência das espécies (neste caso a parte flora da coisa) é mais brutal e descarada. As folhas, as flores, tudo aquilo não tem qualquer vergonha na concorrência do crescimento. Não têm muito tempo, é compreensível, uns meses de vida, pouco mais. Renascem todos os anos, é certo, mas não são as mesmas folhas e flores, são outras no ano seguinte. Para um folha isto deve ser grave.
Não sei porque é que o Inverno é que é complicado (dizem). Chato às vezes, um bocado frio demais, triste com a morte das folhas talvez; mas para elas é simples. Uma folha em fim de vida, desiste, um bocado cansada de levar com tanto sol em cima e pouca rega (isto para as que não morreram queimadas, claro), um bocado amarelenta já, a sentir o caule a pesar, diz às amigas, olha foi giro esta estação não foi? vimos montes de coisas e aqueles estúpidos daqueles pardais que não se calavam um segundo? Que inferno, felizmente foram-se embora depois e aqueles bicharocos que me queriam roer as pontas? Grande lata, vá lá que nesse dia se levantou uma ventania, mas agora estou farta disto e, tá bem até há mais água, sim, lá nisso tens razão, mas não sei porquê não chega, o melhor é deixar-me cair, estou a ver a folha do ramo número quatro lá em baixo, já lá está há três dias e diz que ali no chão é que se está bem, então até à próxima.
Despede-se e despega-se, não dá trabalho nenhum e depois começa o Inverno. Tá feito.
Mas uma folha na Primavera? Uma trabalheira, um esforço descomunal. É preciso nascer e crescer e esticar-se e ficar cada vez mais verde, é preciso abanar com o vento e produzir o ruído exactamente certo, que não seja demasiado alto ou baixo e nem se note conscientemente, é preciso ser mais comprida que a vizinha, é preciso ser mais bonita, mais fresca e airosa e, acima de tudo, é preciso que toda a gente ache que aquilo é absolutamente natural e a gente a ouvir com muita atenção a conversa e não é nada disso, pensam que não percebemos aquele folhear de refilice e que chatice agora viste a folha do ramo número sete, a parva? Armada em verde, aquela é fresca é, aposto que cai ainda em Setembro, ai folha filha aí do ramo número cinco estás a ouvir? diz às tuas amigas abanem-se que estamos em riscos de ninho aqui, oh (faz de conta que é consciência colectiva) não sabes? são um inferno esses acho que se chamam pardais, não se calam o dia inteiro, uff, foram para os ramos pares, daqueles já nos livrámos e a fotossíntese, hoje nunca mais chega? Isto realmente já nem o sol é o que era e não sei o que é que aquela humana ali em baixo com fumo a sair pela boca tá a olhar. Nunca viste uma folha, ó?
- e agora que já não tá aqui ninguém
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