Amanhã
logo de manhã, vou-me embora. Para aqui.
Imagem desfocada
É uma casa antiga. As casas antigas não são feitas de paredes e de chão e de tecto e de janelas. As casas antigas são feitas de fotografias, de sons, de cheiros, de sensações, de lembranças, de arrepios e de sorrisos. São feitas de coisas que já desapareceram mas que ainda existem.
É Inverno. Encosto a cara aos vidros e ficam embaciados. Respiro para o vidro e aumento o espaço. E com o dedo faço desenhos de árvores, aquelas com um tronco e uma bola em cima. De relva em baixo e de céu no cimo do desenho. De casinhas a duas dimensões com telhados em bico e chaminés onde o fumo sai sempre em espiral. De sol a rir. De nuvens e de maçãs em coração nas minhas árvores. No fim acrescento um rio ao longo do desenho e desenho uma ponte, porque tenho medo de água.
E fico a ver o desenho a desaparecer, riscos transparentes em vidro fosco.
É noite. Desço a escadas em silêncio. Oiço a madeira a estalar. Não oiço o relógio porque esse som não se ouve, faz parte do silêncio. Nem sequer quando dá horas se ouve. Sento-me no último degrau, e lembro-me de escorregar pelo corrimão, sentada à amazona por ter que saltar no último segundo. Com o treino as curvas acabaram por ser dominadas. Fico ali sentada sem ouvir o relógio a ouvir sons que não existem, vozes que conversam noutros tempos, mas que sabem que estou a ouvir. Dizem-me, não tens medo de ficar ali quase às escuras? Mas os fantasmas são família, gostam que eu esteja ali, sabem que enquanto eu os ouvir eles continuam a existir.
É Outono. Ainda está sol, mas os fins de tarde são de camisolas grossas. Faço uma pirâmide de agulhas de pinheiro e de pinhas. Equilibro uns troncos fininhos por cima. Risco um fósforo e acendo a primeira lareira do ano. Fico a ver as chamas a aumentar, estendo as mãos. E o Outono começa quando se acrescenta o primeiro tronco grande e o calor que de repente se sente lembra o frio que está.
É dia. Entro em casa com os sapatos na mão. Vou a correr ao meu esconderijo e tiro o pijama e o roupão. Visto-me a ouvir a manhã a começar. Escondo a roupa e os sapatos. Faço torradas. E a quem aparece digo bom dia, deu-me a fome, mas ainda vou domir mais…é muito cedo não é? E fujo com o prato na mão para me rir sem ninguém ver.
É tempestade. A casa assobia cantigas de vento, as madeiras contrapõem baixos de frio, as telhas relembram músicas de chuva. A casa é um instrumento. Já não existe senão em ecos de memória.
(re- post: 100nada 07/03; pt.conversa 12/01)
Gostei do blog! Os meus parabéns e muito sucesso!
Sebastião
qualidade literária – excelente;
mas nada de nostalgias, isso leva a depressões – cuidado;
felicidades.
A rapariga foi-se e agora não se quer vir….. ai esta Cat….
Bonita forma de terminar um ano de posts. Feliz 2004.