100nada

Agapantos

A meio da tarde, um imprevisto. Acordo da preguiça das últimas semanas e, duas horas depois, estou no meu habitat do costume; não estava no programa de férias (na verdade, havia apenas um vago plano de consulta ao livro de receitas para se decidir a sobremesa do jantar, tarefa a que me entreguei durante quase três semanas, redescobrindo em mim o gosto de fazer doces, coisa antiga mas de pouca oportunidade no dia a dia), calhou assim, um entretanto repentino, sem coragem de mais km para trás, melhor de manhã cedo, a tempo para a sobremesa do almoço.

Habitat do costume inclui net, como qualquer bom viciado na coisa. Não que não a tenha pelos meus lados; a biblioteca mais perto tem wireless e precisei de enviar um email. Fiz a minha estreia discretamente, como é habitual nesses locais de estudo sossegado: entrei no site da netcabo e disparou uma música e uma voz aos gritos: o pc era emprestado e tirar o som uma incógnita; imagine-se o resto, entre pedidos de desculpa e carregar em botões até perceber que bastava fechar aquela janela. A anhuca sempre igual a si mesma (não me correram de lá, acho que tiveram pena de mim). Fiquei a saber como funcionava, tratei do que ali me levava, desliguei e voltei para férias que são também – sempre – de net: viciada mas nem tanto.

Não escrevi nada. Não que não tenha histórias, tenho. Muitas. Mas são as minhas, as que ouvi, as que se passaram, as que vão surgindo no sossego do longe de tudo e perto de outras coisas mais importantes. Agapantos, por exemplo, cortar as flores que secam. Se as caipirinhas ficam melhores com açúcar branco ou amarelo. Se as douradas da véspera eram melhores que as sardinhas grelhadas do dia. Se a criança ainda pode tomar mais um banho que já está quase noite. Se hei-de ler alguma coisa ou ver mais um dvd do Poirot/Miss Marple/Tommy and Tuppence. O novo centro comercial de Coimbra, numa tarde depois de uma manhã de feira, camisolas giríssimas só cinco euros e leve três e mais uns alguidares de plástico às cores, seguidos de uma Fnac branquinha depois de almoço: a minha cidade natal cheia de viadutos e vias rápidas e agora com o melhor centro comercial do país, digo eu sem conhecer uma data deles, mas dos que conheço, vá. Na mesma manhã, a feira da vila ali do lado, cada vez mais roupa e mais pó; encontro primos, olá, também cá vieste? cumprimos o mesmo ritual de infância, quando ainda iamos de bicicleta e a feira tinha mais patos que sapatilhas da Floribela. Nostalgia? Sim, claro, eis-me no habitat do costume, fora de programa (mas por uma boa causa), não tão desgostosa como regressarei no domingo, mas já antevendo o ano que começa e eu longe da minha terra, da que elegi como minha, aquela aldeia para onde volto assim que acordar amanhã.

Tenho histórias, tenho. Não são as minhas mas são as que me apetece contar. Se calhar não posso, não são minhas mas hei-de arranjar maneira. Não quero que se percam. Posso não me lembrar depois, quando as quiser contar aos meus netos, as histórias da família deles, as que se contam em tardes mansas de conversas entre tios e primos e avós e netos. É isto que é conta, a memória. Agapantos que se cortam quando estão secos e servem depois para adubar outras plantas.