"The Voyage of the 'Dawn Treader'"
É extraordinário que não me consiga lembrar como é que tal livro (o primeiro) me tenha vindo parar às mãos. Eu sei que passaram trinta anos (trinta e um, talvez), mas tenho tenho sempre memória de todos os livros: muitas vezes não do conteúdo com grande detalhe, mas de onde vieram, sim. Depreendo que tenha chegado no meio das pilhas que a minha Mãe me comprava, para amenizar a idade do armário no exílio da aldeia.
Mas do segundo, lembro-me bem. Foi a única coisa que roubei na vida. Não sei se tenho desculpa, sendo que não foi exactamente roubar e que foi por absoluta paixão.
O primeiro, que li aos 11 anos, uma edição sabe Deus qual, nem sei se portuguesa se brasileira e não o tenho comigo para verificar, foi a minha apresentação formal a um mundo de fantasia do qual me tornei fã nos trinta (e um) anos seguintes e da qual penso que continuarei pelo resto da vida ; pela mão de C.S. Lewis, tornei-me uma narniana. O livro, por mera sorte, percebi mais tarde, era o principal da série: “O Leão, a Feiticeira e o Guarda-fatos”.
Foi um estaladão no cérebro.
Devo-o ter lido uma montanha de vezes e nem sequer sabia que existiam mais. Que me lembre, nada no livro indicava que era o segundo (formalmente é o segundo, embora o primeiro seja completamente àparte, escrito mais tarde, se não estou em erro que não me apetece ir agora confirmar ao google). Mas um belo dia – porque esses dias eram mesmo importantes para uma criança em fase aguda de idade do armário e exilada na (naquela altura porcaria da) aldeia que agora não passo sem, que devorava tudo quando tinha letras e lhe aparecia à frente – na carrinha da Biblioteca Itenerante, vi uma capa parecida e agarrei-me logo àquele tesouro. Chamava-se “O Navio da Alvorada” e é o melhor dos sete. Sem margem de dúvida. Li-o centenas de vezes. Sou capaz de debitar a história toda desde o princípio, o primo Eustáquio, o rato Ripichichi, o dragão da pulseira, os espelhos que tranaformavam as pessoas, o fim do livro, o rato a remar por ali fora até ao final do mundo: é uma viagem alucinante. Claro que a paixão por livros de ilhas de tesouros e piratas maus e coisas assim é capaz de me ter influenciado nesta decisão de considerar este o melhor de todos. O outro (o principal) é bestial e dá a base a este mas não cedo nisto.
Não cedo nisso nem cedi o livro. Ainda o tenho e era da Biblioteca Itenerante, lá está… mas não o roubei descaradamente. Apaixonei-me por ele, perdidamente e não havia a mais pálida hipótese de o comprar: pura e simplesmente devo ser a proprietária (por meios menos licitos da segunda vez) das únicas cópias existentes em todas as livrarias; na altura passaram a figurar na lista de livros que queria e que acompanhava os meus pais quando iam (ou chegavam, no caso do meu Pai). Esse, o da BI incluído na lista, claro, que eu queria era um que fosse meu. E a BI não mo vendia, fartei-me de perguntar. Passei então a recorrer a outra forma para não ficar sem ele: todos os meses o entregava e voltava a requisitar. A pessoa da carrinha devia achar graça àquilo (não havia muita clientela infantil e eu espreitava da janela e via-os chegar e era a primeira a ir a correr para lá) e deixava. E. um dia, a carrinha deixou de vir.
Foram uns tempos menos felizes. Eu tinha aquele livro mas não tinha os outros que vinham na carrinha. Podiamos requisitar quantos? Três? Quatro? E eu era sempre os que podia e mais os que atirava o barro à parede e que rezava que viessem da vez seguinte; e durante esses tempos não tive esse suplemento ao resto que encontrava em casa e que a minha Mãe me comprava. (Já aqui uma vez expliquei: o que encontrava em casa era tudo, mesmo tudo: lia tudo sem entrave algum. Os meus pais achavam que, se eu não percebesse, perguntava. Agora até se me poriam os cabelos em pé a pensar em miúdos a ler algumas coisas que li na altura, mas a gente dessa geração era de outra cepa, passe a cagança.)
Uns meses depois, a carrinha ainda voltou. Eu fui lá, contritamente, que tinha ainda aquele livro para entregar, que gostava tanto dele…regressei com ele na mão para casa. Não me perguntem como, que não me lembro mesmo, mas até devo ter chorado a pedir se podia ser meu.
É meu.
Muito mais tarde, já aos vinte e tal, encontrei a série toda em inglês e reli aqueles e li os outros. Já os li várias vezes. Gosto mais de uns que outros, mas aquele continua a ser especial.
Isto era para ser um post de uma pic do filme. E também era para ser um post sobre o Space Trilogy, que me deu a conhecer a transição entre a fantasia para crianças e a maradice total do autor. O tipo era realmente genial. Eu é que não tenho paciência para clássicos, mas viva eu até aos cem anos e ainda dou uma perninha em tudo o resto que C.S. Lewis escreveu. Muito provavelmente o lado mais scolar é um grande pincel e tenho para mim que só há duas alturas na vida para ler os verdadeiramente chatos: quando ainda não temos discernimento algum (fase que já passei, embora não pareça) e quando nos tornamos nós também outros chatos que tais. Estará para breve, talvez, mas ainda não agora. Com o pouco (discernimento) que tenho, prefiro continuar a conhecê-lo pela maravilhosa discrição dos mares e das ilhas de Nárnia.
- Tudo de pé é que está a dar!
- A blogsfera * começou assim:
Ora aqui está um universo que me passou completamente ao lado.
“O Navio da Alvorada” foi um livro que me marcou muito na idade do armário. Sem me lembrar de grandes coisas, lembro-me de pormenores (são sempre os pormenores que marcam mais, ainda hoje, em tudo). Eu e a Lena devorávamos tudo quanto havia naquela biblioteca itinerante, as duas no mesmo armário, na mesma idade… Anos depois, deliciadas, reencontrámos a colecção. A mim deliciou-me “O Cavalo e o Menino”, que penso que é esse primeiro a que te referes…
E a ternura, a infinita ternura que Aslam me ensinou!
Acordaste-me um sorriso com que vou dormir…
Rui, ainda vais a tempo.
Dulce, alguém que também leu o livro na idade do armário! Que bom! :))))
O primeiro que refiro é, em inglês, “The Magician’s Nephew”, que é aquele em que é criada Nárnia.