Da mágoa não sobra nada
O título ocorreu-me assim, sem nada que o explicasse, sem eu saber como; nem sei o que quer dizer, mas sei o que quis logo escrever. Foi assim, de cigarro ainda por acender na mão a sair para o frio do inverno e a frase a aparecer no intervalo da porta já aberta para fora, o último cigarro antes de dormir e eu aqui agora acordada, a pensar que raio quer aquilo dizer, que coisa esta de me cairem frases em cima a desoras e a saber perfeitamente que sendo a frase uma coisa de nada, o que me apeteceu, aquilo que me obrigou a sentar e a abrir isto foi
há uns tempos nem sei quando que os arquivos foram com os porcos, mas já foi há uns muito tempos, escrevi (parece que ainda a vejo à minha frente) sobre uma mulher num parque de estacionamento de um centro comercial, o carro estacionado à frente do meu, eu ali à espera de um vou ali e já volto num eu fico aqui com o bebé e se era ainda bebé é porque foi há muito tempo. E ela desatou a chorar à minha frente, dentro do carro dela. Chegou, parou, chorou e depois ligou o carro e foi-se embora. E eu, sem saber se fazia de conta que não via ou lhe ia entregar um lenço, estender uma mão. Fiz de conta, claro, que não se estendem mãos a quem se esconde para chorar e nem conhecemos de lado nenhum e estas regras são assim mesmo, fiz de conta e ela foi-se embora depois de limpar as lágrimas.
E nisto tudo pensei enquanto fumei metade do cigarro, fiz até horas para adiar o resto do pensamento, porque sabia que se pensasse ia querer escrever e não são horas e não quero escrever. Não sei se quero, mas se já vou aqui a meio (a adiar, a adiar) já agora acabo, atabalhoadamente, para não soar a mim mesma muito lamechas, que em coisas sérias uma pessoa só tem duas opções, a rir ou à bruta. Escolho sempre que posso que seja a rir, mas às vezes tem de ser à bruta, embora não queira, não agora, não nisto, há uma terceira opção, há sempre.
Quando cheguei a meio do tal cigarro e agora aqui que também já fumei mais de metade deste post mas fumo branco nem vê-lo, lá me confrontei com a ideia da mágoa. Não é minha ou é, claro que é, mas é tão menos, porque a minha é a da pessoa que se senta à frente da outra, já sem chassis e vidros e espelhos a separar-me delas – não me enganei, plural, sim, de várias mágoas de várias pessoas que estão perto e a quem eu não estendo o lenço
NÃO ESTENDO A MÃO
se calhar estendo à minha maneira. Mas essa maneira é fria. Digam-me assim, mas se calhar é isso que querem, uma mão fria, é também disso que precisam as pessoas que se abeiram de ti com as mágoas delas, se calhar o resto já têm, se calhar talvez queiram (não querendo mas sabendo que precisam) de uma mão que se estende mas nem sempre é para fazer festas, pode ser para dar estalos (podem ser dados estalos com carinho? não sei) , pode ser só por ser fria, essa mão, o cérebro que a acompanha, pode ser um monte de merdas
(que já estou com vontade de fumar outra vez, mas só para terminar)
Um dia (se calhar é hoje ou já foi ontem ou o ano passado ou a vida toda) provavelmente vou lamentar todos os abraços que não cheguei a dar quando sabia que havia quem precisasse deles. E, em vez disso e não nego que possa ser por essa mesma razão que me chamem em certas alturas os meus amigos, ofereço a minha amizade analítica.
(enfim, é fodido; vou fumar)
- Despacho já isto e tá a andar
- Os MEUS prémios
Bom dia, Catarina!
(comentário off-topic: p’raqui um pouco ‘encavacado’, sem saber bem o que dizer…)
Obrigado 😉
E os amigos seguramente agradecerão essa “amizade analítica”. Acredite.
como costuma dizer uma amiga minha: ser amigo é também saber dizer não. porque, por vezes, é necessário ajudá-los a despertar e a abrir os olhos, em vez de se só passar a mão pela cabeça…
Acho que aquilo que mais lamentamos não são os trambolhões que damos mas sim os abraços que retemos no pensamento, como uma semente guardada no saco sem direito a ser atirada à terra e a criar raízes. Xicoração.
Eu devia fumar. Se calhar dormia melhor. Se calhar qualquer coisa.
Eu acho que, neste texto, deste a mão. E que da mágoa sobra bastante. Mas eu tenho a mania que sei, não ligues. Beijinhos.
Aquele post lá de cima não é para eu comentar, pois não? Tu sabes que os meus sentimentos por ti são profundos, mesmo que não te diga nada, não sabes? (o que é que tu queres, quem anda com um coxo…?!)
Parábola do dia:
Quando alguém vier ter contigo por ter fome, não lhe dês um peixe, ensina-o a pescar.
Slightly off topic, mas levemente adequado.
BTW, um belo texto.
MN