100nada

Conto de Natal (2)

Nesse preciso momento, o menino pobrezinho sentiu uma vontade avassaladora de possuir aquela caixa. Era uma vontade absoluta, uma vontade que, num segundo, o transformou de criatura de Deus em desejo puro. Esqueceu a lama que o cobria, o calor gelado que a fome lhe deixava sempre no estômago, a cor roxa dos dedos dos pés nos sapatos de calcanhar cortado, a curiosidade sobre o mundo que desconhecia mas adivinhava existir para além do seu, e fixou o olhar na caixa da montra, como se ela já lhe pertencesse, como ali tivesse aparecido com a única finalidade de ser dele. Porque, no coração do menino probrezinho, aquela caixa era dele e de mais ninguém. Queria tê-la, poder correr para casa com ela debaixo do casaco remendado (tinha sido do pai o que era muito bom, porque lhe cobria as pernas, pois o Ernesto, apesar de pobre, era um homem de figura considerável, mercê talvez da dieta saudável de farináceos e leguminosas, embora sempre em insuficiente quantidade), queria poder chamar .Mãe!’ e quando ela viesse à porta com aquele sorriso aberto de quem olha para o seu mais precioso bem, o menino probrezinho puder abraçá-la, abrir o casaco e dizer .Olha! É para ti! Feliz Natal!…

Imaginava já ver o brilho nos olhos da mãe, aquele brilho que se acendia como uma luz, quando à noite, depois do jantar, se sentava à beira da cama dele e lhe dizia, queres uma história agora? E lhe contava histórias de senhoras elegantes de vestidos de rendas, homens aprumados de bigodes encaracolados, carruagens e cavalos de crinas entrançadas com fitas coloridas, de meninos de chapéu de palha e fatos de marinheiro, de barcos no rio que partiam através de um longo mar que escondia outros mundos, ainda mais maravilhosos e distantes …e às vezes, já quase adormecido e antes de sentir os lábios da mãe suavemente pousados na cara, ouvia-a dizer muito baixinho: .Ah, meu querido filho, tudo isso é muito bonito, mas a melhor coisa do mundo, a melhor de todas, é poder trincar o paraíso e senti-lo derreter-se lentamente na boca: só há uma coisa de que eu tenho realmente saudades, e essa coisa, meu filho, são chocolates…’

E numa dessas vezes, em vez de sentir a mãe afastar-lhe após o beijo de boa noite, sentiu pingos na cara e ficou muito quieto, de olhos fechados e a respirar profundamente, e quase que ouviu (mas não teve a certeza) a mãe sussurrar .Queira Deus que nunca os proves…as asas que o sabor dos chocolates te derem, serão cortadas pela vida e pelo eterno sabor das couves. Mas a dor de saber que um dia as tiveste, essa nunca mais desaparece…’

(à suivre)