100nada

Era isso, palavras

Estava sentada

(a cadeira está de costas para a janela e a sala não é minha. Ao fundo está um quadro por acabar e ao lado outros de menor dimensão. Tubos abertos no chão, espátulas, um fato-macaco pendurado ao lado de um outro, os dois azuis manchados de tinta. A cadeira é de metal e cabedal preto, uma cadeira design normal, uma mesa velha ao lado, um cinzeiro e eu vou tentando não atirar o fumo para a gaiola do pássaro que está a tomar banhos de sol no fundo da sala)

a fumar um cigarro

ainda agora pensei que tinha a noite estragada. Comprei um maço novo e não o encontrava. Pensei, caiu no carro, não se fuma mais hoje, mas acabei por encontrá-lo no último sítio onde o procurei, é sempre assim

(o fumo vai subindo, azul. A sala é branca, mas na realidade é azul. Os quadros são azuis. Não. Os quadros não são azuis, os quadros são pintados, mas é azul a cor, é azul mesmo sem lá estar, mesmo nos lábios vermelhos da rapariga do retrato – sei quem é, tem aquele sorriso de olhos abertos – existe alguma coisa de azul. Talvez do fumo dos cigarros que ali fumo. Ou talvez seja realmente o azul predominante, a tapar as outras cores. Ou então não é. É um caminho para o azul. Um azul cinza, cada vez mais pálido. E eu vejo aqueles quadros, ainda azuis a caminharem para a ausência de forma e cor e penso em palavras)

e penso que não se pode caminhar para o azul cinza cada vez mais pálido nas palavras

(Sim, minha querida, é o que eu vou fazendo aos poucos: vou tentando pintar com água do mar, mas em palavras. E não se pode. Não se pode. Desaparecem. Como poderiam ter desaparecido quase todas as que aqui escrevi agora e eu continuaria a saber o que não tinha escrito. E um dia seriam textos de longas linhas escritas a tinta transparente.)

e por isso escrevi tudo.

0 thoughts on “Era isso, palavras

  1. vanus

    Eu penso que se pode caminhar sempre numa qualquer direcção do azul, do mesmo azul para tudo até à transparência. Tenho a certeza se um dia lá chegares, vais encontrar mais que uma pessoa que saiba lê-la, essas longas linhas que a muitos olhos não existem, mas que para outros serão tão vivas, coloridas e diferenciadas como o azul mais forte. Acredito que se desaparecermos alguém nos saberá ver, então, não há cor que possa igualar tamanha ligação.
    Eu sei que precisamos ser vistos sempre (you are what they see), e sei que manter a cor importa, e por isso a escrita, como tantas outras coisas, mas acredito na escrita transparente ou de cor única, e às vezes ela existe mesmo só que nós não a vemos também, mas se olhares para trás vais ver quantas linhas transparentes imperceptíveis tu seguiste e te seguiram, e vieram culminar aqui, como um acaso, ou como uma leitura do que não se vê :)
    beijo e bom dia (desculpa o tamanho do comentário, mas a tua escrita é, como dizer, “flutuante”, isso! não passa, fica)

  2. Rui

    Não gostei daquela frase do comentário acima que diz “You are what they see”.
    Prefiro pensar que eu sou o que eu sei que eu sou.
    Mas viajei nessas tuas palavras do post. Boa leitura!

  3. catarina

    Falta-me tempo para te responder Vanus, mas lá irei. Beijo.
    O mesmo para o comentário do Rui. Btw, Rui, já ontem tinha visto que tinhas regressado em novo endereço. :))

  4. Maré

    Estava aqui a pensar que o mar é azul, mas se o apanharmos na mão em concha fica transparente.
    Se bem que se atirarmos de novo o pedaço que sobra do que nos escorre entre os dedos unidos ele volta à cor da sua origem. :)

    A ânsia de azul é o caminho da vontade de voltar ao que se tem e só não se consegue pintar à trincha. Às vezes há que mergulhar a cabeça no balde para que o olhar domine a cor.
    É pelos olhos que se começa a desenhar um rosto, né?

    Ao longe, barquinhos de vela branca a dançar nas ondas.

    Beijo

  5. vanus

    Rui, é uma frase que se costuma dizer (não é minha), também prefiro pensar como tu, mas não deixa de ter uma grande parte de verdade…reconhecemos sempre uma parte de nós na forma como os outros nos vêem.

  6. mana

    Conheço o cenário…
    Estás a ver o céu? Aquela cúpula azul que se estende acima de nós. O céu não existe: é um vazio, de tempo intransitável e intransitório. O que tu vês é transparência, translucidez (como o título da menina do rosto de olhos abertos) e reflexo. Como a água. Que é densa, invisível, opaca, incolor e colorida. Tudo envolve e ocupa de um modo que pode até ser quase imperceptível mas é sempre indelével. Entra em nós em estado gasoso, mas no seu estado mais natural mata sem se dar por isso. Quando vi o teu blog pela primeira vez e li qualquer coisa como “o vazio abaixo de zero” ocorreu-me que também te interessasses por um vazio que eu muitas vezes procuro – e encontro: um estado de suspensão do qual as emoções se ausentam, a não ser na sua forma perene, intrínseca, em que se sente apenas o corpo e a cabeça – a vida, simples e intensa. Que é azul, mesmo com os blues.

  7. mana

    Conheço o cenário…
    Estás a ver o céu? Aquela cúpula azul que se estende acima de nós. O céu não existe: é um vazio, de tempo intransitável e intransitório. O que tu vês é transparência, translucidez (como o título da menina do rosto de olhos abertos) e reflexo. Como a água. Que é densa, invisível, opaca, incolor e colorida. Tudo envolve e ocupa de um modo que pode até ser quase imperceptível mas é sempre indelével. Entra em nós em estado gasoso, mas no seu estado mais natural mata sem se dar por isso. Quando vi o teu blog pela primeira vez e li qualquer coisa como “o vazio abaixo de zero” ocorreu-me que também te interessasses por um vazio que eu muitas vezes procuro – e encontro: um estado de suspensão do qual as emoções se ausentam, a não ser na sua forma perene, intrínseca, em que se sente apenas o corpo e a cabeça – a vida, simples e intensa. Que é azul, mesmo com os blues.

  8. cunhadinho

    o céu é azul porque já não haviam telhas Luza. porque pegas em Luza e zás pás trás tens azul…

  9. catarina

    …e zás pás trás, no pc da cunhada, eis como, em estreia de blogs, nasce a vontade de também ter um…:)