A alma do pintor (1)
Era uma vez um pintor que não pintava.
Em tempos, pintara muitos quadros. Passava os dias a pintar telas enormes, verdes e azuis, com um entusiasmo de entrega total, os seus verdes e azuis muito brilhantes de cor e de vida. Esquecia-se de tudo, de falar, de comer, de beber, de dormir, apenas pintava. E depois, quando considerava o quadro terminado, caía para o lado num sítio qualquer e desmaiava de cansaço. Mas durante esse sono desmaiado, sonhava que se levantava e usava um pincel especial e outra cor nos seus verdes e azuis; e, quando acordava, o quadro que tinha pintado estava dividido em quadrados: uma grelha preta por cima das suas cores habituais.
Esse estranho facto acontecera com todos os quadros, todos. E, um dia, o pintor fartou-se daquilo e desistiu de pintar.
Passou a anotar o mundo em papelinhos. Podia ser um papelinho qualquer e, normalmente, eram factos do mundo daqueles muito importantes: nomes e números e consultas e pagamentos e recados e coisas importantes a fazer. O pintor era um pouco distraído e assim organizava-se, dizia ele. Claro que perdia os papelinhos todos, mas na realidade o que interessava era organizar-se. E, naquela mania dos papelinhos, que nunca faltavam, fossem bocados de toalhas de papel, guardanapos, envelopes rasgados, contas de supermercado ou avisos da água e luz e talões multibanco, faltava sempre uma caneta. O pintor irritou-se um dia, comprou uma caneta à prova de desaparecimentos e passou a guardá-la no bolso da camisa. Assim já se podia organizar e passou a ser um homem contente.
Era uma vez uma criatura minúscula que andava a vadiar por aqui e por ali, muito curiosa e teimosa e outras coisas acabadas em osa, das quais, por ser tão pequena, quase que se poderia dizer também airosa. Ou airosa era a vida dela, talvez. Não sabia muito bem o que era, a criatura, mas não se importava muito com isso, porque o que queria era ver e saber e conhecer o que estava lá fora, preocupando-se muito pouco com considerações interiores. De qualquer modo, sendo tão pequena, se alguma vez se cruzasse com algum pensamento interior, julgaria tratar-se de alguma bactéria que importava apenas expulsar o mais rapidamente possível. E era o que fazia.
O pintor que não pintava gostava de viajar. Talvez os anos todos que tinha passado fechado na sua sala de telas verdes e azuis e de quadrados pretos lhe tivesse dado uma vontade súbita de andar pelo mundo. Ou então, pura e simplesmente, não conseguia estar muito tempo no mesmo lugar.
Fosse lá como fosse, o que é certo é que um dia o pintor que não pintava encontrou-se a olhar para uma paisagem. Estava no alto de uma escarpa numa ilha qualquer que não sabia bem o nome (já aqui foi dito que era um pouco distraído). E, lá em baixo, estava uma paisagem de verdes e azuis.
O pintor sentiu uma coisa, talvez uma sístole. E, logo a seguir, sentiu uma picada na camisa. Bateu com a mão no sítio da dor mas não encontrou nada. E não ligou mais.
Sem saber que, dentro do bolso, tinha uma alma desmaiada com a pancada.
(à suivre)
- Isto é uma actualização
- Irritação
Amor com amor se paga e sendo assim: “Quando se encontra um mestre de pintura, escondem-se os papelitos pintalgados atrás das coistas” 😉
Adorei!
Beijo
As sístoles fazem-nos lembrar de como podemos nunca mais pintar. E de como precisamos de continuar a fazê-lo. Porquê? Porque um pintor pinta, um escritor escreve, um artista representa… até ao último sopro.
Espero bem que esse pintor viva ou morra de pé!
Conseguir sublimar as emoções negativas e atirar para a tela toda a raiva, toda a paixão, todo o amor. Seja a tela o que for. Uma página em branco, um palco, uma partitura… É disso que são feitos os verdadeiros. Não dessa treta que se vê e lê a metro.
Espero que a história seja mesmo para continuar. Uma boa história não se deixa a meio.
Duende, Maré, obrigada.
Homem Banal, alguém me ‘obrigou’ a escrevê-la, vou ter de a levar até ao fim.