Ali plantada à porta, com um portátil na mão e telemóvel na outra, “que não se preocupem que eu é que cheguei adiantada”. O portátil servirá depois para, com a net através de um cartão de operadora-telefónica-net-banda-larga, mostrar um universo virtual onde não há pobreza, não há fome, frio, sede, sono, onde não é preciso um tecto ou comida na mesa.
Ali plantada à porta, no coração da Mouraria, numa rua que, me avisam antes, é uma rua onde a ladroagem se junta (“mas não te preocupes, que eles não roubam ali, roubam noutros lados”).
Encostada ao prédio, moderno, arranjado, com parque de estacionamento de portões de grade, a Dona Alzira (que não se chama Alzira), de sapatos ortopédicos, cabelos completamente brancos e casaco de malha sobre calças de treino, pergunta-me se preciso de ajuda; respondo que estou à espera de umas pessoas e que eu é que cheguei adiantada. Nos 15 minutos seguintes, acendo cigarros e oiço-lhe as histórias.
Não, a Dona Alzira não vive ali. Quem vive é a filha, mas ela fica ali a tomar conta dos netos. A zona é má, percebe? Esta zona é muito má, esta rua principalmente e não vá ali tomar café, se quiser é mais abaixo e ainda passa por outro café mas não entre, vá à pastelaria mais à frente (ainda desço um bocado mas depois volto para trás e continuo a conversa). É pena, diz ela, zona antiga, tradicional, a minha casa é mais abaixo, toda a vida aqui vivi, tem portão a minha casa, tem mesmo um portão de ferro e está menos degradada, mas não durmo lá, sozinha não durmo lá. Sabe que aqui há um beco com uma bananeira, ganha sempre os prémios todos nos santos populares? e a cara aberta num sorriso orgulhoso, nem tudo é mau no bairro, ainda há motivo de orgulho e depois mais histórias de talvez aqui mais acima haja alguém que, tá a perceber, eu não sei de nada, mas é um vai e vem de carros a noite toda, nem sei de nada, nem vi nada, mas eles andam com as seringas, elas numa pouca vergonhice, só ouvi dizer que nunca vi nada algum medo no rosto de se calhar já ter falado demais.
Ali perto, um jardim lindíssimo no alto, por cima de um muro, de laranjeiras carregadas e buganvílias roxas, um pouco selvagem, deixado ao sabor da chuva e do sol, sabe é que as pessoas têm as vidas delas e pouco tempo para cuidar dos jardins, em tempos era um palacete. E os prédios, ainda de janelas altas e varandas de ferro forjado, as fachadas de tinta a cair, as cortinas de rendas, os ténis pendurados numa corda. A rapariga que passa e desce a rua e depois volta com duas latas de coca-cola. Os tipos de mau aspecto que vão passando (estes, daqui a umas horas quando for noite, percebe o que eu quero dizer?)e ainda hoje lavei este chão todo, mas não vale a pena eles espalham o lixo de propósito todos os dias lavo com lixívia, é um nojo, uma porcaria, todos os dias lavo
e eu a pensar, não vale a pena, mas ela, a D. Alzira que ali viveu toda a vida, perto do beco que ganha os prémios todos e onde tem medo de dormir à noite, sozinha, apesar de ter um portão de grades, insiste ainda em lavar o chão todos os dias. Não vale a pena mas todas as varandas têm vasos com flores. Não vale a pena mas eles, esses moradores antigos desse bairro esquecido que só serve para os roteiros turísticos (“zona típica da cidade”) e não merece fundos comunitários e fatias do OE para umas latas de tinta e umas centenas de polícias, ainda lutam contra a degradação total, ainda tentam alguma coisa contra a indiferença que é dedicada à pobreza, que lhes foi dedicada.
E ainda perguntam se precisamos de ajuda.