100nada

No semáforo vermelho

Saem da sombra, os dois. Param. Olham à volta à procura de qualquer coisa. Aparentemente qualquer coisa serve, porque se sentam num banco no meio de um passeio com vista para uma rotunda ao lado de uma criatura com uns sacos. Riem-se e acendem cigarros como se fossem os últimos. Ou os primeiros. Não dou conta se as mãos dela tremem, mas iria jurar que sim. Olham para a paisagem de carros a passar e de prédios debruçados sobre as ruas. Ficam sentados enquanto os cigarros duram.
Depois levantam-se e regressam à sombra dos segredos partilhados.


a amordaçar-me

para não escrever um post que começaria assim

caríssimo filho da puta, se alguma vez passares por aqui e leres isto

e terminaria em qualquer coisa como

nem vale a pena dar-te um biqueiro nos tomates, porque não os tens.

Mas seria um desperdício de energia. Siga.


Bubbles

“Mergulhamos da prancha dos 10 metros para uma piscina vazia, com a certeza que lá em baixo nos aguarda o betão e estarão depois os nossos amigos a juntarem-nos os bocados. Quando, de repente, percebemos que tem água, precisamos de braçadeiras até conseguirmos nadar; a tua angústia não passa disso, de uma braçadeira.”

(imagem daqui)




Dia do Pai

E porque é Dia do Pai e para poupar trabalho a tanta gente a entrar no meu blog pela pesquisa “dia do pai” e, acima de tudo, porque quero isto aqui, hoje.

O meu Pai
(escrito a 20 de Março de 2006)

O meu Pai é o homem mais direito que eu conheço.
Como é que se define, como é que se escreve um Pai? Como? Desaparecem as palavras à medida que as memórias se atropelam, não chegam a tempo as palavras porque já estou no outro lado do mundo.
Imagino, porque não sei se me lembro, não me lembro, mas vejo, é tão estranho, quase que poderia descrever a roupa, como as vejo a elas as duas tão pequeninas a fugirem pela pista fora, e eu, a mais velha, a ajudar a carregar um dos muitos sacos e a minha Mãe e as filhas a reencontrarem o homem da casa na primeira (não, não foi a primeira, mas é como se fosse) das centenas de despedidas e reencontros da nossa família; tinhamos vestidos côr de laranja de tricot feitos pela Mãe, com uma risca branca na bainha – e nas mangas? não me lembro, mas trocámos de roupa na casa de banho do avião e afinal aqueles vestidos eram quentes demais para aquele país, mas tinhamos chegado, estavamos juntos e o meu Pai estava lá, tinha ido primeiro

no livro de fim de curso há um verso que diz que iria para lá um dia

e foi.

Eram tão novos, meu Deus, mais novos do que eu sou agora.

Todos nós aprendemos desde muito cedo a despedirmo-nos. Habituarmo-nos à ausência e à constante presença na ausência. Não sei como é que os pais conseguem dar isso aos filhos, mas conseguem: que se sintam sempre seguros, sempre amados, que os pais estão lá sempre, mesmo que estejam do outro lado do mundo. No meio do turbilhão que foram quase todos os anos das nossas vidas, mesmo nas alturas em que me senti mais perdida, nunca me senti desamparada. E, no meio do mulherio, muitas vezes desvairado, o meu Pai era (e é) a presença sempre calma, sempre cerebral vá lá filha vamos lá ver isso com calma, vamos lá reflectir sobre isso; vamos.
(estou a misturar tudo, as palavras estão aqui e o resto já vai além): vamos falar sobre isso e depois pensas o que queres fazer, no fundo é isso. É tão simples: falamos e depois tu pensas.

O meu Pai fez de mim uma criatura independente. Ensinou-me uma data de coisas, sem precisar de dizer nada, só pelo exemplo: as obrigações e os deveres, o pensamento analítico, o valor da calma (que não domino nada bem…), o domínio sobre si mesmo. Ensinou-me a conversar e a desconversar, mostrou-me a ironia, o sentido de humor, a beleza das árvores, ensina o meu filho a plantar. Aprendi que o amor não precisa de ser dito alto, que pode ser um passeio por um caminho; às vezes em silêncio, outras a dizer estás a ver aquela, já tem trinta anos, não se nota nada, parece uma árvore pequena ainda, o miúdo é um bocado teimoso, tens de ver isso, já trataste dos impostos? ó filha, francamente.

O meu Pai é o homem mais direito que eu conheço. Tem tentado toda a vida fazer de nós pessoas direitas.

Obrigada, Pai.

[ainda não tratei dos impostos, Pai; mas o resto acho que vai indo: em 3 anos, apesar de tudo, até eu consegui crescer um bocadinho]


a 5ª frase da página 161

Eu nem sou de correntes mas creio que, em tempos, até fiz esta, porque gostei imenso. E porque não se recusa nada à babyblogger Rita, pois tá claro!

“Ford and Arthur held their breath.”

é a 5ª frase da página 161 do “The Restaurant at the End of the Universe” de Douglas Adams. É o segundo volume da série “The Hitch Hiker’s Guide to the Galaxy” e nem vale a pena apresentar o livro e a série. É que, ou conhecem ou não. Se conhecem é porque, provavelmente, em Ultrazora na Galáxia Vrazkenetr, um ultrazorin azul abanou as asas e, de acordo com a teoria do caos, um dos livros caiu-vos em cima em alguma altura da vida. São daqueles que nos caem em cima, tipo marretada na cabeça. Um gajo nunca mais é o mesmo e nunca mais se consegue rir das mesmas coisas de que se riem as outras pessoas: ri-se com outras e essas pessoas encolhem os ombros, abanam a cabeça e dizem “deixa lá, gosto de ti à mesma”.

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Este meu está amareladíssimo, sujíssimo e todo partido. Não admira. Tenho a mania de assinar os livros e meter a data e o sítio. Este é de Londres, 1989. Vintage, portanto e eu a rir da mesma maneira -à parva – cada vez que o releio.

E passo a corrente à Clara, à Crezia, à Mad, ao André e ao Marco. [tudo tuítas]


O risco de pisar a linha

(é preciso isolamento e insonorização mental e é isso que eu estou a fazer)

E é preciso também que, contra toda a racionalidade, contra toda a contenção, contra todas as ruas de sentidos únicos que parecem terminar em paredes altas sem portas, uma vez, uma vez de vez em quando, uma única que seja, se abram asas e se largue tudo isso e se siga o que diz o instinto, a alma, o desejo, seja o que for que nos aponta uma direcção. Que se voe como as traças à volta das lâmpadas, contra as paredes, à procura de saída. É preciso quebrar as antenas enterradas nas sinapses, espetar palitos nos olhos e voar às cegas, deslumbrados que estejamos, a rasar muros, a fazer tangentes e piruetas no ar. É preciso arrancar os pés do chão, cortar amarras e não olhar para lado nenhum (com os palitos a saltarem das órbitas e o vidro moído a corroer a garganta), é preciso perder o norte e os outros pontos cardeais, é preciso mesmo não se saber, perdermo-nos antes de tudo, é preciso (percebem?) ficar sem nada. Sem nada é exactamente isso, é o vazio total, o mergulho no fundo, o despojamento absoluto. É retirar tudo o que é excedente, os pesos e as medidas, pisar as algas do fundo sem retirar as plantas dos pés sem ter medo das cobras de água e dos lagartos, é arriscar ser-se atirado contra as paredes e desfeito em segundos e, ainda assim, achar que vale a pena.


Tudo ao ar

Ora que caralho! vou arrancar isto tudo, toda a gente que não se pode escrever porque depois não se pode ler, arrancar os leitores de cima do meu ombro, sacudir toda a gente que se pendura enquanto escrevo, saiam daqui senão emudeço e depois não me sai uma palavra e não é para isto que tenho um blog, é para escrever como se ninguém estivesse a ler, saiam daqui agora, vá só um bocadinho, prometo que mostro no fim, tá bem? mas agora desandem-me das orelhas, não se pendurem no cabelo, tenho que saber que não estão aí. É muita gente, foda-se, é toda a gente, não me importo, sei que é assim, mas é ler, ok? saiam-me da cabeça enquanto escrevo, senão tenho que pesar tudo, medir tudo, cada palavra, cada sentido, cada coisa que digo. Eu não sou assim, não sou contida, não quero enfiar para dentro, não quero ficar quieta a ver o que acontece primeiro e fazer depois, isto dá cabo de mim, sufoco em frases e depois, já sei, desato aos berros quando for a altura errada, de fúria, a explodir tudo o que ando aqui a juntar, uma letra, duas, cinquenta mil, porque sim, porque não, porque é melhor/pior/talvez/e depois/se e eu quero que tudo isso se foda, já. Não quero saber de nada disso, não quero ficar com um sorriso civilizado, ah claro claro, a acenar com a cabeça, a dizer como é evidente, a concordar por fora e mandar-me a mim mesma para o real caralhinho por dentro e isto não é falta de tomates, é oh sei lá o que é, sei, claro que sei, é esta minha mania de controlar tudo e a mim mesma acima do resto e querer ser só só só racional e dividir tudo em compartimentos estanques, isto é racional, aquilo também, aquele ali com fechaduras duplas e este ok, este autorizo-me a abrir mas aquele já não, enfio-lhe com mais um cadeado de pensamentos firmes, que não pode ser, nem pensar, tá fora de questão e não é nada assim. Ando a envenenar-me com racionalidade e estou farta farta farta e agora vai tudo raso.

[claro, aquele agora já ficou ali atrás que já liguei o botão da contenção, boa noite a todos que isto nem é que me passe, que já passou só por ter escrito]