Há uns anos eu comprava religiosamente a Visão. Não era semanalmente, nem sempre, mas quinzenalmente, não perdia uma: abria a revista na página da crónica de Lobo Antunes, li-a, rasgava a página, guardava e, eventualmente lia a revista ou não.
Eu, de 15 em 15 dias, pagava um conteúdo. Porque o queria ler, porque o queria guardar.
Cada pessoa compra jornais e revistas em papel porque sim, porque os quer ler, no todo ou em parte ou porque é suposto levar o Expresso para a esplanada ou o Publico para o café; quando eu ia para Lisboa de comboio, também comprava o Público todos os dias: conseguia acabar as palavras cruzadas todas até ao Cais do Sodré e o jornal ainda servia para ser lido pelo gabinete todo onde trabalhava. E aqui, diacho, levanta-se um bocadinho da base desta Declaração de Hamburgo, assinada pelos tycoons dos jornais, encabeçados por Pinto Balsemão, com a finalidade oficial de dar cobertura legal à propriedade industrial/direitos de autor e a finalidade real de salvar a imprensa como ela é actualmente, ie, algo obsoleta.
A base, como a entendo, pode ser simplificada ali naquele meu exemplo. Eu comprava o jornal e a rapaziada toda lia-o sem pagar direitos de autor. Embora eu – e creio, a maior parte das pessoas – pensasse que estava apenas a emprestar uma coisa que, dessa forma, teria mais divulgação e quem sabe, algum dos meus colegas até passaria a comprar o jornal (na realidade, cada um comprava os seus e íamos trocando) porque havia ali um conteúdo qualquer que quereria para si mesmo, nem que fossem as palavras cruzadas, que essas já estavam feitas. Mas o dono do jornal não vê a coisa por esse lado: vê a coisa como, caneco, ora ali tanto leitor que devia estar a pagar pelos conteúdos que forneço e népias, está a ler à borla e isto não pode ser.
Claro que há uns anos, esse problema era um bocado irrelevante, já que havia aqueles jornais, havia aquelas notícias e não havia mais nada. Mas depois chegou
a net.
E, na net, como toda a gente sabe, está tudo. Incluindo montanhas, toneladas de notícias ao alcance de um clique e mais uns himalaias de sites, blogs, foruns, redes sociais e o que for preciso, a comentar, a linkar, a copiar, a desmentir, a ridicularizar, a cascar, a aumentar, até a investigar, todas essas e mais umas quantas notícias.
Ora os donos dos jornais de papel que até têm já sites e tudo o mais, devem ter começado a sentir no bolso os efeitos desse enorme leque de escolhas dos leitores e utilizadores de notícias e, esse facto agora aumentado pela crise que faz toda a gente pensar duas vezes antes de gastar uns euros num pedaço de papel que traz as notícias de véspera, que já estão na net há horas, completamente requentadas, crónicas e artigos de opinião que podem ser bestiais mas também podem ter qualidade inferior àquele blog x ou y que até diz o mesmo de forma mais inteligente ou radical ou acutilante, passou a ser o mau da fita a abater. Essa gente toda, pensarão os donos de jornais de um certo (terceiro) mundo, essa maltosa frustrada que queria era trabalhar na redacção de um jornal, esses medíocres todos armados em jornalistas e cronistas, alguns até anónimos, meu Deus e mais todos os geeks que acham que o open source é a nova bíblia, são os culpados da crise que se abate sobre o jornalismo. Porque é essa gente toda que retransmite os conteúdos dos jornais e não paga direitos de autor! Temos que os obrigar. E vai daí, nasce essa tal Declaração de Hamburgo, que deve ser uma coisa muito maçadora que eu não li – avisei logo no título que era vista por uma leiga – mas também nunca ninguém leu o Novo RAU e toda a gente sabe tudo sobre arrendamento urbano. Aliás, eu não tenho que ler a Declaração de Hamburgo já que quem a assinou provavelmente ainda nem sequer percebeu que os jornais actuais de sucesso não serão exactamente naqueles modelos e também não deve ter lido grande coisa sobre o assunto.
O modelo? Bom, aconselho a ler o post do Paulo Querido e os do Pedro Fonseca (este último de um conjunto de cinco, ler também os anteriores) mas tiram-se dali os seguintes pontos básicos:
– Os donos dos jornais não estão contentes com os seus resultados líquidos;
– vai daí querem agora proteger os direitos de autor que é sempre uma causa nobre e assim;
– foram pegar-se com o Google, que os mandou pastar, dizendo que não tem que pagar direitos de autor coisa nenhuma, mas que, com todo o gosto, os retira imediatamente das listas de pesquisa, bastando para isso os sites introduzirem duas linhas de código;
– é possível que a coisa, levada ao extremo, significasse que os providers de internet retirassem aos utilizadores o acesso aos agregadores de notícias que não pagassem direitos de autor;
– é até possível que aqui este tasco, linkando uma notícia de um jornal, levasse com um processo de não ter pago direitos de autor;
– e por aí fora, numa espiral fantástica de delírio galopante, só falta mesmo quererem desligar a ficha da internet (coisa que se faz em alguns países e provavelmente, a causa oficial também será nobre e plausível)
(curioso, que se esqueceram do twitter, onde há mais links de notícias por segundo que noutro lado qualquer)
Estão, enfim, não querendo ofender ninguém, um pouco, vá, como direi, talvez com falta de antioxidantes e vitamina K.
Eu não tenho soluções, lá está, que a minha vida não é prestação de assessoria de formas de viabilização da imprensa. Mas também não sou defensora do agora é tudo do povo e quem escreve por profissão não tem que ser pago, e quem vende jornais não tem que receber por eles, como é evidente. O seu a seu dono e com certeza que conteúdos que custam a produzir, têm que ser pagos. Mas também me parece que esta não é, de todo, a resposta à crise. Não há uma internet papão, feita de parasitas de um lado e os desgraçados aflitos (até admito que estejam, hello, nas outras áreas todas da economia, anda tudo desgraçado e aflito, é a vida na crise!) dos tipos dos jornais que têm que ter os direitos de autor protegidos. Quando eu linko uma notícia sou uma parasita? Ou comentando-a, acrescentando valor (seja um valor bom ou ranhoso) e chamando a atenção para ela, não dou mais cliques ao jornal? Mais leitores, mais visibilidade? Cabe ao jornal arranjar formas de viabilizar e tirar proveitos dessa maior visibilidade, não é? Agora pagar direitos de autor, isso é que era bom, não linko mais nada, claro: haverá sempre um jornal que não se importará de ter mais visibilidade com essas referências, porque conseguiu maximizar esse aumento de leitores provenientes dos “parasitas” e, e esse, caríssimos leitores, esse é o jornal que irá sobreviver no longo prazo.