100nada

Os cavalos lusitanos dos Açores

Este deve ser o post mais desinteressante de todo o blog. Mas está aqui atravessado e eu quero escrevê-lo como forma de consolidar conhecimento e porque pode ser árido e chato e tudo, mas eu gostei desta matéria, gosto de saber estas coisas e ter um exemplo (que não é meu, btw, foi-me dado) recente, actual e que, de alguma forma, me faz um clique nisto tudo.

Há umas semanas, foi o drama dos lusitanos nos Açores. Se não estou em erro, os cavalos vinham para o continente para uma prova, tinham sido embarcados numa quinta feira e o cargueiro encalhou a um sábado. Na segunda-feira seguinte, todos vimos os cavalos a serem resgatados com gruas; coitados (mesmo) já deviam estar a ficar completamente à toa, fechados em caixas aqueles dias todos, a levarem com os abanões do mar.

E fecha-se a história, os cavalos foram resgatados, foram para casa e foram felizes para sempre.

Ou não?

Não. Pois é. Não. A história não acabou. Graças ou (des)graças ao direito marítimo internacional e coisas afins que eu desconhecia até há bem pouco tempo.

No Açoriano Ocidental Online de dia 6 de Dezembro, vem a seguinte notícia (autor, Pedro Nunes Lagarto):

” Cavalos resgatados continuam reféns

Os proprietários dos sete cavalos de raça pura lusitana que estavam a bordo do navio São Gabriel, que encalhou a 21 de Novembro na costa sul da ilha de São Miguel, correm o risco de não reaver os animais.
Com base na lei marítima internacional a empresa norte-americana que procedeu ao resgate do cargueiro, a Titan, usufrui do direito de retenção de mercadoria em “avaria grossa” pelo que tem os animais à sua guarda.”

Isto parece chinês, não é? Porque raio fica a empresa que resgatou o cargueiro com os cavalos, caneco?
Pois é isso que vou passar a explicar em linguagem para leigos, coisa que também eu sou.

Aquela “avaria grossa” ali entre aspas é que é a razão disto tudo. E esta “avaria grossa” não quer – de todo – dizer que foi uma avaria muito grande nas máquinas ou coisa parecida. É que nem de longe.

Uma “avaria grossa” é um dano. Uma avaria, em direito marítimo é um dano, sofrido pelo navio ou pela carga. Há dois tipos, grossa e particular, iadaiada siga para a “avaria grossa” que assenta num princípio mesmo giro do direito marítimo: há uma espécie de solidariedade entre o dono do navio e os donos das mercadorias transportadas: em caso de ser preciso tomar medidas para salvar o navio as despesas são repartidas entre os donos do navio e das mercadorias transportadas. Giro, não é? Eu acho. acho interessantíssimo isto. A sério.

Ora agora, saindo da parte teórica e extrapolando para a realidade, ali o que aconteceu foi que foi preciso recorrer a um rebocador da tal empresa norte-americana para salvar o navio. E alguém tem que pagar a conta. É o dono do navio? Sim, mas como é “avaria grossa” os donos das mercadorias transportadas também terão que pagar, na devida proporção etc e tal. Ora os cavalos eram a mercadoria. Donde, depreende-se que os cavalos foram retidos até a conta ser paga.

Estão a ver a cena? Eu estou. Lá vão os cavalos embora. Eu morra aqui ceguinha se não é isto que vai acontecer.

15 thoughts on “Os cavalos lusitanos dos Açores

  1. Pingback: Catarina Campos

  2. Catarina, é a lei dos “salvados marítimos”, um código mais velho que qualquer outro tratado no mundo. e sem conhecer muitos pormenores da história ainda assim adianto que esta lei tem todo o sentido.

    o princípio é simples, no mar estamos sózinhos e em caso de problemas … isso pode ser um problema. daí que todos os que por lá andem sejam obrigados a prestar assistência, se a isso chamados, seja em que condições forem. trata-se de um principio de sobrevivência (e essa é mais importante que os cavalos) e que normalmente é assegurado pelo forte contexto de solidariedade dos que por lá andam. Mas nem todos são assim, e por isso o código nautico, cheio da sageza dos seculos, introduz uma nuance que leva a que até os maiores crápulas, e sobretudo esses, prestem o auxílio se for necessário. é a regra do “cabo”. basicamente se tu aceitas auxílio (lanças um cabo de reboque) de alguem numa situação dificil, essa pessoa passará a ter direito à embarcação e a todo o seu espólio. É evidente que na maior parte das vezes sobrevive o espirito solidário e esse não reclama de nada, mas quando um filho da **** não se move a não ser pelo interesse do salvado, ainda assim é melhor que o faça do que deixar que morra toda a tripulação afogada.

    Esta prática nos dias de hoje (espanta-te) está ‘industrializada’, e há companhias marítimas que navegam pelos mares do mundo inteiro à procura de barcos em situação de perigo e que requeiram ajuda. Os holandeses creio são os maiores nisso. E não estamos a falar de veleirozinhos, estamos a falar de grandes barcos, petroleiros até.

    pode num certo contexto parecer uma anormalidade, mas nota que no mar a condição mais importante numa situação de apuro é a sobrevivencia, ou seja, que levem os aneis mas deixem os dedos, ou melhor, que se lixem os cavalos. neste caso quero supor que a companhia que resolveu o embróglio está a servir-se desse direito para garantir a sua remuneração.

    beijos

  3. catarina

    Zé, obrigadíssima pela tua explicação toda. Bestial! Já estou contentíssima de ter escrito o post. :)))

    Não sei bem se é a mesma coisa (os salvados e esta situação) já que só tive um dia para me apaixonar pelo direito marítimo internacional (a sério mesmo, fiquei a adorar a coisa) mas faz todo o sentido que derive dessa mesma base, a solidariedade na sobrevivência. Achei mesmo curioso este princípio, mas não tinha percebido donde viria e agora entendo perfeitamente.

    Agora tenho pena de não ter sabido, mas se tiver uma outra oportunidade, pois tá claro que levanto essa questão dos salvados e até que ponto se mistura com estas normas.

    Os cavalos é que não têm culpa, claro e são eles que pagam…

  4. Cool Mum

    Muito interessante. Eu gostei das breves incursões no Dir Int. Especialmente o privado.
    E se por causa disso os cavalos ficarem em S. Miguel, tanto melhor para eles…

  5. josé palmeiro

    Agradou-me imenso,aprender alguma coisa sobre o Direito Marítimo, neste caso particular.
    Primeiro porque, como residente ns Açores, poderá alguma vez a minha carga, ficar na posse ede outrem(?) e segundo, porque foi das coisas que acompanhei a par e passo, sem nunca ter abordado a cosa por esse prisma.
    Já agora esclareço uma pequena “vingança”:
    Apesar de ter sido chamado esse rebocador gigante, pois só ele teria a possibilidade de resgatar o cargueiro, foram os dois, pequeninos. rebocadores afectos aos portos dos Açores, o “S. Miguel” e o “Pêro de Teive”, que desencalharam o “S. Gabriel” e o trouxeram para o porto de Ponta Delgada. O grande, o monstro, ficou a ver…

  6. catarina

    Cool,mas o problema é exactamente esse, os cavalos arriscam-se a ir parar ao Texas ou coisa assim…

    José Palmeiro, muito obrigada pelo comentário e informações. Realmente se ainda por cima não foi o rebocador gigante a fazer o trabalho, ainda mais é gritante que os cavalos não fossem arrestados pela empresa…enfim, será mais uma coisa a ser arrastada pelos tribunais, provavelmente.

  7. josé palmeiro

    Na verdadem a ser como relata o “Açoriano Oriental”, a coisa é grave.
    No entanto e vistas as realidades, é assim: O cargueiro, encalhou junto à costa de S. Miguel. As autoridades marítimas tomaram, de imediato, conta da ocorrência. Foi contactado o armador que, perante os factos, decidiu contratar uma empresa, a “Titan”, para fazer a remoção do navio, a transfega dos combustíveis e demais elementos poluentes e o salvamento da carga. Foi o que se fez, com enorme êxito. Constatou-se que a potência dos rebocadores dos Açores, seria insuficiente para a remoção do navio, pelo que, desde a primeira hora, esses mesmos rebocadores, estiveram a manter unicamente a sua estabilidade, enquanto as outras manobras se iam efectuando. Quando o cargueiro estava liberto da carga e com a subida da maré, tentaram e conseguiram, salvar o navio e trazê-lo para Ponta Delgada, com todo o cuidado, sem qualquer intervenção do rebocador transatântico, que entretanto chegera de Gibraltar.
    Perante este quadro, não vejo onde está toda essa confusão. O armador só terá que pagar à empresa o contratado e o resto é tudo com as autoridades portuguesas. Bem, isto sou eu a pensar, sem nada “pescar” dessas leis da “pirataria”, mas que não fazem sentido, isso não fazem.

  8. carmen

    Pois senhores, eu tenho um contentor a bordo desse navio e não vejo com graça nenhuma ter tudo o que me pertence (carro, recheio da casa, roupa,etc), na posse dessa empresa. Sobretudo porque me pedem para pagar 75% do que é já meu e a viagem (já paga à FaialTráfego) até Lisboa.
    Comprar o que é meu?! e pagar duas vezes o mesmo transporte?! e o armador declarou avaria grossa porque? para dividirmos as despesas entre todos? Alguém perguntou aos carregadores que armador escolhiam para transportar a carga? Não. Nem fui avisado por ninguem do encalhe. Soube-o por acaso, nem transitário ou armador tiveram nunca iniciativa de telefonar. Anda tudo a fugir às responsabilidades. Fazem-se perguntas.. nunca sabem muito bem nada. Estado da carga? “não sabem” – dito pela Titan. Custos? “não sabem dizer”. Pedem que assinemos um “cheque em branco” para entregar a carga que as despesas vêm depois (sejam elas quais forem!!!!).

  9. catarina

    José Palmeiro, mais um obrigada por ir mantendo aqui as notícias sobre o assunto.
    Não sou jurista, mas do que entendi da formação que tive, pois basicamente foi isso que me fez escrever este post, a questão é mesmo essa: não é “pirataria”, é o narmativo que rege o transporte marítimo de mercadorias. sim, o código marítimo internacional é mesmo diferente, face ao direito que estamos habituados a lidar.

    ora do que entendi, e tal como diz, o armador tomou a decisão de salvar o navio e a carga. A partir desse momento, aquilo que prevalece ou que é estabelecido enfim, é que se trata de “avaria grossa”: danos que afectam todo o navio e carga. De acordo com as normas do transporte marítimo de mercadorias, o pagamento das medidas para salvar navio e carga é dividido, em proporção, entre o armador e os donos das mercadorias. Portanto, sim o armador só tem que pagar o contratado, mas o problema é que os donos das mercadorias também têm que pagar uma parte dessa conta. E isto está na lei. O problema é que quem envia a sua mercadoria desconhece isto.

    Carmen, muito obrigada pelo comentário. Lamento imenso essa situação e lá está, é um exemplo terrível de alguém que foi apanhado numa situação em que a lei aplicável não é aquela mais usual…O armador declara avaria grossa, porque provavelmente é uma situação de avaria grossa mesmo. E nesse caso realmente os donos das mercadorias têm que pagar a sua parte…daí que digo mais acima que isto se irá arrastar em tribunal durante muito tempo.

    Uma coisa aconselho, não sabendo destas normas a fundo nem sendo jurista, mas tendo algum bom senso: sem consultar um advogado eu nunca assinaria um cheque em branco.

  10. carmen

    O direito marítimo é arcaico; protege o armador em qualquer situação. Uma coisa é certa, caso nunca venha a reaver o que me pertence (por custos excessivos na sua recuperação), alguém vai ter que explicar em tribunal como pude ficar sem nada,absolutamente nada, depois de ter confiado a carga a um transitário e ter pago os custos de transporte. Não vai ser tudo assim tão simples. Cumpra-se a lei também no que se refere à responsabilização pelos danos materiais e morais.

  11. LSants

    Esta situação é tao absurda que não consigo evitar uma pergunta absurda: Ia a bordo 14 pessoas, pela mesma lógica estas pessoas também não deveriam estar “presas” e à espera que os seus familiares pagassem pelo seu resgate??? Afinal de contas são seres vivos como os cavalos e se calhar os familiares até estão dispostos a pagar!!

  12. catarina

    Concordando que a leia é de alguma forma, pouco usual, note que as pessoas não são transportadas como mercadoria. Isto aplica-se aos cavalos, que eram transportados como mercadorias e daí se regem pelas normas que regem esse tipo de transporte. As pessoas vão como passageiros e, obviamente, a lei a aplicar será outra.

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